Essa empreitada não trata de
representações oníricas e nem de substâncias que se revelam no brilho.
Opacidade, musgo e terra, são palavras que correspondem mais a este trabalho de
recolher a realidade para dentro dos devaneios, transmutando-a nessa cobertura,
para depois estendê-la novamente, renovada e flexível, aberta a alternâncias e
conjugações – forças aéreas e terríveis como a água parada de um lago que,
preso na terra, reflete o céu. As nuvens caminham dentro do lago, como o lago anda
com as nuvens. È por isso que nesse lago de água parda, não é a beleza o seu
elemento. Fora o seu reflexo, pouco brilho existe no verde - musgo de sua água velha,
enlameada, onde poucos ousariam mergulhar.
Nessa água, é a velhice que reina oposta a eterna juventude, uma velhice
que é renovadora por se tratar de uma água medicinal, medicinal por se tratar
de uma água velha , e velha por nela se dar a impressão de que ela sempre esteve
ali. Aqui, não são as belas aparências do mundo interpretável dos sonhos - que
seguem o encalço do mundo desperto, positivo e cognoscível - que reinam, a
elevação da verdade e a perfeição, são estados distintos dessa agência. Nela, não
se acessa um deus artístico e lacunarmente diurno, pois em sua essência, lhe
faltam limites – a aparência ilude, engana e, sem delimitações, não ensina nada
por somente esbarrar agitações selvagens, contradizendo a sabedoria calma do
artista. É impossível ser solar e calmo, ao mesmo tempo que colérico e arredio,
por isso, é a tentativa de permanecer nessa conjugação que gera uma embriaguez
arrebatadora e repousante ao mesmo tempo. É essa embriaguez incondicional que
nos faz tocar o homem natural e ingênuo, até o esquecimento de si, que é oposto
à consagração da beleza. Esse rompimento com o cordão umbilical “consigo”, é o
que faz desaparecer inteiramente o princípio de individuação, e com isso, a
subjetividade se desfaz diante de um impulso geral, natural e universal. É nessa
reconciliação com o sempre oculto da natureza, nos fazendo evidenciar uma
pareia e beber de seus dons mais terríveis (tratamos aqui de terra), que
conseguimos ir além de nossa ligação com os homens-imagens com seus desejos,
tarefas, prazeres e dramas. Nesse ir além, todas as delimitações, junto com o
arbítrio, desaparecem diante do hálito da fenda ancestral e anterior aos
acordos. É o manter-se farejando esse hálito, que embriaga e faz espocar as
imagens que sugerem a laboração desta cosmicidade.
Conceber e adentrar o âmbito disso que
brota, exige o desprendimento das educações e, principalmente de dogmas que já
dizem, cercados por todos os lados com palavras, sobre o natural e a natureza -
como se desaprendêssemos a andar e falar. Só assim, encantado, ingênuo, borrado
e simples, é possível – a partir de si, e não de falas externas, fazendo viver
em si mesmo o que é sugerido somente em potência imaginativa - acolher essa
harmonia de mundos e sentir algo diverso que soa sobrenatural. É por isso que não
é possível falar em arte, nem de poder artístico – nem mesmo na voz de um
artista -, pois é a natureza sem nome que se apresenta opaca e o caminhar se
torna tão extasiado que tudo é obra de arte, deixando de se fazer necessária.
Nessa correspondência cósmica, os corpos são
trabalhados – verificados, recortados, ajuntados, diagramados, justapostos -,
tratando-se de colagens, pinturas e esculturas que rediagramam a vida num
constante reposicionamento, nos deixando para a natureza, como a tinta é para o
pintor.
Os devaneios são naturais e, se os
devaneios são o jogo da natureza com o homem, os trabalhos que se dão numa
cosmicidade, são frutos do jogo do homem com seus devaneios. Por isso é necessário,
o tempo todo, recuar e ausentar a voz do homem que fala, pois este estado, se
não experimentado em si próprio – e consecutivamente por si próprio -, não
passará de uma alegoria. Só se pode ser semelhante e comungar dessa conjugação,
quando se devaneia o devaneio como devaneio. Pois é assim que cada um se sabe, prescindindo
ao seu modo, podendo o barco partir de qualquer porto. É assim que se pode ser
servidor do devaneio.