quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Para a semente de meu avô

Pensei em lhe escrever, quando o Pedro ganhou da Tuka, uma semente que te lembra muito, mas acabei deixando pra lá. Só que hoje, ao revê-la jogada no chão de casa, não pude resistir.
Era nos bolsos das calças sociais, na gaveta do criado mudo, ou na carteira, que sua imagem habita minha memória afetiva.
Agora, o Pedro está aqui do meu lado. Pedi que pegasse a sua semente e foi como se tocássemos uma lembrança. Fico muito feliz em ter a oportunidade de partilhar isso – te comunico aqui um prazer. Lembro que tu eras como um amuleto – acesso a minha genealogia dos fetiches  -, um fetiche  no sentido original da palavra: que é feitiço. Saiba que eu carrego cristais e pedras na carteira – Dionísio tem um pé nessa raiz -, por isso, lhe escrever muito me agrada, pois é como se me reescrevesse. Carregar estes feitiços muito me conforta e amaina o peito – consigo caminhar um passo tranquilo sobre a terra – sempre um passo a mais.
Me despeço de seu anteparo, aproveitando pra dizer que o Pedro – que é meu cúmplice nesse reencontro fundante -  também quer lhe escrever neste postal que te enviao para compartilhar a nossa situação.   

Muito obrigado por habitar o nosso imaginário;

Dos seus, Bruno e Pedro Henrique Pastore





À nuvem dos anjinhos

Foi quando passei, de madrugada, na última semana, na Alameda Yaya, que tentei te achar. Sinto que o terreno ainda está lá, aberto e vasto – na frente dele pude devanear e visitar as imagens que vou lhe contar aqui seguindo o seu rastro: em baixo da mesa do refeitório com mais uma molecada, toco meninas de minha idade, todos se tocam – cheiro forte de urina. Escada grande com degraus largos; divertia-me alucinadamente numa bateria eletrônica invisível com baquetas presas na cintura e fones de ouvido – era emprestada por um amigo –, sol e crianças correndo, gritos por todos os lados, estou feliz, pois era um brinquedo que eu só via pela televisão. Areia e óleo na minha cabeça que coça muito, piolho, estão a matá-los, sol quente e luz transpassada, vejo uma fileira de crianças na mesma situação e as imagens se confundem. No canto de uma sala enquanto todos ao redor ensaiavam alguma dança, toco uma menina, nos tocamos, é bom. Estou no fusca bege de minha tia voltando pra casa de pé apoiado entre os bancos da frente, falando sem parar na cabeça dela – quase ouço minha voz – sobre o que eu havia feito na escola e sobre a salada de escarola que eu chamava de rabiola – toco uma memória que não é só minha e me perco nesse vulto – o vapor se desfaz e se refaz num refeitório bem iluminado em volta, uma mesa comprida – me sinto bem e gosto do lugar. Exploramos cada cantinho – grande, uma árvore em cima do parque, nos escondíamos bem, reconhecendo nossos corpos e a eira do terreno descaído – suados seguíamos a Vontade num encontro real.  Ah, nesta madrugada escrevi uma frase no muro do seu terreno, seguindo minha situação íntima, espero que esta fundação sirva para lhe dar dignidade.  
Não acesso aqui o que eu pensava na época, ou talvez nem pensasse. Mas sei que inventava bem, aumentando as experiências escolares no caminho de volta pra casa – nem tudo era dito, sabemos. Também, devo lhe agradecer por cada ato, pois aqui sinto a criança natural que eu fui, e assim persisto, assim persiste. Reconheço-me daqui, acessando um núcleo de pureza;


Muito obrigado, do seu B.P.

Freguesia







 Valeu Ivan Silava




 
 tramas na trama da cidade

há terra no corpo do outro

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

À boiada passando na rua,


Sinos, mugidos anunciando a sua chegada aos gritos(eh boi, eh boi). Corro pela janela da sala, vai do teto ao chão. Dali vejo passar a sua materialidade – na mistura de medo e curiosidadde sentia chegar o fim da tarde. Bois e cabras no triângulo da campista com a Bahia, onde brincávamos depois do assombro de sua aparição – cheiro e marca de estrume no asfalto, os rabos balançando e uns bichos retardatários virando a esquina depois, rumando para o calipal.  Sinto um orgulho enquanto lhe escrevo, não só pelo prazer de ter te visto pelas ruas do bairro, em plenos anos noventa, mas também por esbarrarmos afinidades íntimas e sobrenominais: toco o rosto negro – carranca escura e enchapelada do Zé do boi pastoreando, gritando e guardando o rebanho pela frente na firmeza de que os bichos iriam lhe seguir incondicionalmente. Aqui me asseguro existencialmente - casa germinada –, me avizinho a um parente: alegra avista da gente reconhecer um xará.
Aproveito para lhe dizer que, num dia em que a paz me faltou e me vi lançado e sozinho na terra, visitei sob a voz de um outro vizinho que conseguiu dar uma iconografia ao nosso significado  nessas trilhas que vão e vem e riscam as fronteiras em busca de um abraço apertado, mesmo sem ter um sapato pra calçar. Talvez, nesses versos que vou partilhar(mais por uma questão provisionaria e alimentícia, jamais por uma aculturação), toquemos o indizível e inaudito de nosso ligamento nessa dupla paixão. Escreverei como se escreveu em mim, de memória afetiva, pois foi como recolhi e como trago, mais ou menos assim:
“ Nunca guardei rebanhos
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor
 Que conhece o vento e o sol
E anda pela mão das estações a seguir e a olhar.
Toda paz da natureza sem gente,
Vem sentar-se ao meu lado
Como uma borboleta na janela
É o sossego que deve estar na alma.
As mãos colhem as flores e as flores colhem as mãos
Sem se dar por isso.
Os meus pensamentos são contentes
Para além das curvas da estrada
Como um ruído de chocalhos.
Pensar incomoda como andar na chuva.”

Agora entendo o pastor na frente e todos os bichos soltos seguindo atrás.
Enfim, espero que estes versos te encontre numa legal e
 assim me despeço, grato, desejando que deus nos livre de nossa mente. Muito obrigado!
Felicidades, B.P.
 



Para o (a) magnetismo triangular,


Meu velho, ou minha velha, sei lá, só sei que lhe escrevo para dizer algumas palavras sobre nós. São elas, apenas alguns apontamentos sobre o que intuo e agora posso nomear.
Inclusive o nome que te chamo agora é uma forma que eu jamais alcançaria na época de nossos primeiros encontros. O que sabia ali, e sabia de corpos, era somente que nos fazíamos bem, principalmente nas horas em que a paz me deixava e eu subia na laje para acessar aquele nosso estado apaziguante. Em nós, eu sentia uma integração oposta ao caos dos acontecimentos que se davam lá em baixo – me sentia uno numa sensação que me ultrapassava. Hoje acho que consigo lhe dizer, com e por maior precisão, disso que me transbordava.
Em ti, quando via a serra da Cantareira beijar o céu, eu me sentia parte de um triângulo fixo e amoroso que me prendia e me unia àquela imensidão. Éramos ali, como que um para o outro numa esfera acolhedora. Éramos um para o outro uma espécie de esfera materna que amainava todas as inquietações. Jamais eu ocultaria a substância dessa integração com o acidente de um relato assassino.  Te trago aqui um vegetal vivo nutrido pelo germe da infância que ainda me acompanha.
Mesmo assim, não posso deixar de partilhar algo que insiste em me cindir, pois não deixo de me perguntar o que acontecia ali. Saiba que sinto que este magnetismo pode ter atraído a realidade que me cerca no agora.
Mas jamais tiraria o seu sossego com indagações sobre o meu chamado. Aqui, só o registro de termos devaneado juntos é certo, e sei que isso não lhe é novo. Sabemos também que existe aqui, algo que nenhum vocabulário alcança.
Fico com seu idioma divino, abastado e grato por todos os nossos encontros. Nos vemos em breve, amiga(o).

Um pra sempre muito obrigado, de seu velho e presente amigo, Bruno P.

Para a imaturidade lúdica de minha avó



Sei que você é fruto de uma infância dura e roubada, compreendo. Não consigo te ver no concreto de uma realidade, pois é numa intuição breve e divinatória que consigo ver como me tratava. Saiba que não lhe relatarei nada, pois não nos serve, assim como nada de natureza ideal – livrei minha cabeça para estar reconciliado com a experiência que me reconciliará com tigo. Na verdade, venho por meio desta, me despedir de ti, empilhando as boas imagens que tenho de minha avó – rego aqui as flores da minha infância. São nas imagens benfazejas que teço as transfigurações da realidade a fim de recolher a dignidade em tudo que for produtivo e magnificante, para nisso tecer a minha real transformação.E é de chofre que me vejo andando na rua campista disputando com minha avó, quem mais amava quem. Esticava meus braços ao máximo e dizia a ela que a amava do maior tamanho do mundo. E ela devolvia dizendo que me amava mais ainda, maior ainda.
Lhe envio esta imagem que se imprime em nós para dizer que o que trago de ti são somente intuições que tentam responder ao meu comportamento psicológico no agora. Saiba que não lhe escrevo pra isso. Quero lhe dizer em verdade que a depressão de minha avó em cada dia nublado, assim como aquele dia em que ela me reprimiu por eu ter pintado o cabelo do navegador de amarelo, não passam de sintomas de uma infância empalada. Lhe digo também que foi você que não deixou ela ver que o cabelo do navegador era loiro. Agora bem te compreendo, e te perdoo me desfazendo de qualquer amarra. Sinto a integração que isso introduziu nas substâncias de meu corpo e é nisso que me despeço na certeza que nunca mais nos veremos. Agora posso sorrir e brincar junto as crianças.

Adeus, felicidades, B. Pastore.

Salto da arte de acolhida para uma real cosmicidade




Essa empreitada não trata de representações oníricas e nem de substâncias que se revelam no brilho. Opacidade, musgo e terra, são palavras que correspondem mais a este trabalho de recolher a realidade para dentro dos devaneios, transmutando-a nessa cobertura, para depois estendê-la novamente, renovada e flexível, aberta a alternâncias e conjugações – forças aéreas e terríveis como a água parada de um lago que, preso na terra, reflete o céu. As nuvens caminham dentro do lago, como o lago anda com as nuvens. È por isso que nesse lago de água parda, não é a beleza o seu elemento. Fora o seu reflexo, pouco brilho existe no verde - musgo de sua água velha, enlameada, onde poucos ousariam mergulhar.  Nessa água, é a velhice que reina oposta a eterna juventude, uma velhice que é renovadora por se tratar de uma água medicinal, medicinal por se tratar de uma água velha , e velha por nela se dar a impressão de que ela sempre esteve ali. Aqui, não são as belas aparências do mundo interpretável dos sonhos - que seguem o encalço do mundo desperto, positivo e cognoscível - que reinam, a elevação da verdade e a perfeição, são estados distintos dessa agência. Nela, não se acessa um deus artístico e lacunarmente diurno, pois em sua essência, lhe faltam limites – a aparência ilude, engana e, sem delimitações, não ensina nada por somente esbarrar agitações selvagens, contradizendo a sabedoria calma do artista. É impossível ser solar e calmo, ao mesmo tempo que colérico e arredio, por isso, é a tentativa de permanecer nessa conjugação que gera uma embriaguez arrebatadora e repousante ao mesmo tempo. É essa embriaguez incondicional que nos faz tocar o homem natural e ingênuo, até o esquecimento de si, que é oposto à consagração da beleza. Esse rompimento com o cordão umbilical “consigo”, é o que faz desaparecer inteiramente o princípio de individuação, e com isso, a subjetividade se desfaz diante de um impulso geral, natural e universal. É nessa reconciliação com o sempre oculto da natureza, nos fazendo evidenciar uma pareia e beber de seus dons mais terríveis (tratamos aqui de terra), que conseguimos ir além de nossa ligação com os homens-imagens com seus desejos, tarefas, prazeres e dramas. Nesse ir além, todas as delimitações, junto com o arbítrio, desaparecem diante do hálito da fenda ancestral e anterior aos acordos. É o manter-se farejando esse hálito, que embriaga e faz espocar  as imagens que sugerem a laboração desta cosmicidade.

Conceber e adentrar o âmbito disso que brota, exige o desprendimento das educações e, principalmente de dogmas que já dizem, cercados por todos os lados com palavras, sobre o natural e a natureza - como se desaprendêssemos a andar e falar. Só assim, encantado, ingênuo, borrado e simples, é possível – a partir de si, e não de falas externas, fazendo viver em si mesmo o que é sugerido somente em potência imaginativa - acolher essa harmonia de mundos e sentir algo diverso que soa sobrenatural. É por isso que não é possível falar em arte, nem de poder artístico – nem mesmo na voz de um artista -, pois é a natureza sem nome que se apresenta opaca e o caminhar se torna tão extasiado que tudo é obra de arte, deixando de se fazer necessária.
Nessa correspondência cósmica, os corpos são trabalhados – verificados, recortados, ajuntados, diagramados, justapostos -, tratando-se de colagens, pinturas e esculturas que rediagramam a vida num constante reposicionamento, nos deixando para a natureza, como a tinta é para o pintor.


Os devaneios são naturais e, se os devaneios são o jogo da natureza com o homem, os trabalhos que se dão numa cosmicidade, são frutos do jogo do homem com seus devaneios. Por isso é necessário, o tempo todo, recuar e ausentar a voz do homem que fala, pois este estado, se não experimentado em si próprio – e consecutivamente por si próprio -, não passará de uma alegoria. Só se pode ser semelhante e comungar dessa conjugação, quando se devaneia o devaneio como devaneio. Pois é assim que cada um se sabe, prescindindo ao seu modo, podendo o barco partir de qualquer porto. É assim que se pode ser servidor do devaneio. 





sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Aos batuques nas panelas no quintal

Sinto a fundação – sua imagem me diz muito sobre as minhas aptidões e desejos mais terríveis que sinto por ainda não ter disposto a arder no mundo com tanto fluxo e intensidade que eles exigem e merecem. Temos tempo, algo me diz. O tempo está acabando, me diz uma velha negra, meio ave meio gente.
Batuco as panelas dispostas na bancada de cimento do quintal. Está sol, fim de tarde, uma colher de pau ou qualquer outra coisa me são para baquetas.
Minha avó se desespera ao fundo – isso que me pediu que parasse.
Visualizei uma coisa grave, talvez o recalque de meus sentimentos musicais seja um esticamento-eco desse pedido desesperado. Ele não foi meu, não me é.
Sempre pelos cantos, me vejo, batucando, dançando e cantando – estou num palco: piso de taco do meu primeiro quarto de infância, toco multidões a minha frente, estou sozinho e de pijama, cai água do chuveiro e vejo as ferrugens do box velho e desajeitado.
Acessei aqui com a acuidade que lhe escrever me doa, um de meus maiores processos de ilusão. Posso dizer que muitas vezes, visitei mundos sem sair de minha casa-corpo. Tenho que, mesmo envergonhado, lhe confessar que até hoje me pego nisso, quando acesso o meu núcleo permanente de infância e, assim transponho as pilhagens do mundo - tocamos origens de mundo aqui, coisas nossas, benfazejas e, por mais que não tenhamos feito grandes esforços para nos concretizarmos, sei que nos somos, numa substância real e física .
Desfaço aqui todas as amarras para ser fluxo onde o magma e seus adventos passam e se manifestam em seu âmbito. Estico. Movença.
Tu sabes, que acessamos aqui uma liberdade mineral. E é nisso que me despeço, grato.
Do sempre seu, B.P.

  

Ao meu primeiro skate

Uma caixa branca, mistério nas alturas do armário.
Sabia o que era e, na medida que crescia chegava mais perto de meu presente. Um tio havia me dado, minha avó tinha guardado por tempos, por puro medo de que eu me machucasse. Não prezar pela liberdade do menino fez de mim um desbravador daquela caixa branca, monólito na última prateleira do quarto da bagunça – assim me fiz aquele que quer acessar. Enfim, conquistei meu skate que me foi velado – desvelar me tornou nato, me vem à voz e fala.
Nunca quis manobrar, mas tive que aprender e, na medida em que fui crescendo, conquistei-o para brincar no quintal – saiba que juntos desfrutamos, num rodízio, os deleites da ardósia quente.
A rua me atraiu – a ladeira chama os meninos e os rolimãs chamam as ladeiras, são sinônimos desse chamamento-imã.Três ou quatro num carrinho. Fizeram a curva aos berros – a felicidade toma as ruas onde o sol reina. Precisava de meu skate e, com muito embate, consegui te colocar para navegar no asfalto liso da rua Bahia – eras um tubarão.
Lixa e roda grossa, me admirava te olhando esticando os instantes de toda tarde. Descíamos a rua, eu sentado em você, as vezes dois ou três em cima e a felicidade em nosso encalço.
Desço a rua na velocidade alegre que a ladeira nos dava, já devia ter voltado pra casa – sempre é a última vez. Vejo minha avó correndo em minha direção, me chama gritando e eu perco o controle, raspo o joelho no asfalto, você desce e espirra de lado, minha avó se desespera, como sempre ela fez quando perdia o controle da situação – toco a neurose ancestral, me livro disso -, você vai parar debaixo do caminhão de gás, grito para o homem esperar, mas ele não entende, minha avó grita por cima e ele se perde. Ele acelera e te parte ao meio. E até hoje culpo todos os desesperados - o sol não foi tão brilhante nos dias que seguiram aquele verão.
Perdoo e aprendo com isso.
Sabemos que fomos íntimos e, a partir de agora, o que nos liga será mais fundante do que aquilo que nos separa. Vieram outras madeiras.

Lhe agradeço, muito obrigado, do seu, B.P.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Um amuleto para não me deixar esquecer

Na época da técnica (...) de banimento do imanifesto – a arte tende ao desaparecimento. A grande arte fundadora já ficou enterrada. A palavra do poeta não é sequer audível. Ele é apenas uma extravagância, uma esquisitice, e a arte dá lugar à ante-arte, à multidão de artistas, de libélulas esvoaçantes com suas sacadas vivenciais e estéticas. Mero suspiro de libélulas aprisionadas extravasando emoções e fazendo designs. E serelepes que se pensam livres, que não se sabem mera simulação e repetição do mesmo. Meros funcionários da produção e da indústria cultural. No caso da palavra literária, do meio literário, eles são tão objetivados e formatados quanto a palavra do médico, a palavra do bispo, do cientista e do juiz. Pura mesmidade enaltecida como produção artística. A palavra cultivada, a palavra competente, prêmios, festivais e escritores numerosos simulando a existência de um dizer literário que cada vez mais se ausenta e se distancia de uma palavra real. Nas antípodas do produzir incansável das libélulas literárias, encontra-se a palavra-gesto de Antonin Artaud: ‘Quando se escava o cocô do ser e da sua linguagem, é preciso que o poema cheire mal (...) permanecer no ser uterino do sofrimento onde todo grande poeta já mergulhou para, uma vez saído para fora, continuar fedendo!’. Impossível melhor compreensão acerca da arte e do combate entre mundo e terra do que esta. Como vemos com Artaud, a arte pode estar acabada, mas não acabou. Ela emerge sempre que a dor de andar pelo mundo morto nos atiça a saudade do originário.  Em maio eu caminhei por uma praia do Rio de Janeiro. Estava horrorizado pelo modo como o homem se apossou da praia como um cenário e uma área de lazer destinada a sua subjetividade e a sua vontade. Pessoas correndo com tênis luminosos, bronzeadores, jogos e eventos. A parte dos pobres, a parte dos gays, a parte dos velhos. Tudo sendo usado e consumido num deleite estético carcomido. Tablados com ginástica e música altíssima. Ninguém para saudar, honrar, guardar a praia e o mar. O mar serve ao homem, mas o homem também serve ao mar, recolhendo-o e amando-o na palavra poética. Para concluir, digo que é necessário sustentar a dor do mundo, passar do estágio passivo kafkiano para o estágio ativo de denúncia. Tentar deslocar o homem que ainda está fixado como subjetividade e vontade. Lembrá-lo do arrebatamento. É isso o caminho de migração, do voltar para casa. Nascemos no paraíso, nascemos para guardar o paraíso. De volta ao lugar já não há questão de obra de arte, porque tudo, cada gesto ou palavra, desde o lavar uma xícara ou o cumprimentar um amigo, tudo é obra de arte e celebração contínua. E se o salmão sobe o rio, eu digo: o salmão sobe o rio, pois é na intensidade do brilho, na incandescência, que moramos.”

J.P. da fronteira.

Um cheiro de chá tomou a casa

-"de repente, onde vivíamos, tudo começou a se aquecer e o fantasma da fome começou a nos ameaçar, e só nos restava seguir no encalço dos rebanhos ou encontrar uma alternativa que nos permitisse seguir vivendo na sagrada terra dos antepassados. As práticas mágicas se mostraram impotentes e, nesse ínterim, nada trazia os rebanhos de volta e a agricultura despontou como a única alternativa possível para a nossa salvação" -:

o pastor observava, ao amanhecer, que o sol surgia em pontos diferentes do firmamento, mas sempre do mesmo lado e, de maneira similar, observava que ele se punha também em pontos diferentes, mas sempre do lado oposto do horizonte.
Ao deixar seu abrigo, sua fenda, durante a madrugada, ele se dava conta de que as estrelas surgidas no oeste, rolavam até desaparecer no horizonte. Assim ele percebeu que estas estrelas não eram as mesmas ao longo do ano e, desse modo, o primitivo pastor acabou se familiarizando com algumas estrelas e constelações, ou por seu brilho mais intenso, ou porque o ciclo delas coincidia com algum ciclo importante da natureza.
Assim, ele acabou entendendo que, à medida que a noite avançava, as estrelas mudavam de posição da mesma forma que o sol durante o dia. De prontidão, ele se pois a registrar aquilo que via através de desenhos, pinturas e gravuras. Mais tarde, erigiu rudes monumentos de pedra. Os primeiros, foram levantados, com a finalidade de assinalar a passagem do dia pela direção da sombra projetada pelo sol. Assim ele notou que a sombra do meio dia se orientava sempre para o mesmo ponto do horizonte. Nessa época ele já, além de ter caçado, tinha descoberto umas poucas ervas, raízes, frutos e sementes que funcionavam como complemento alimentar. Os animais domesticados, eram acostumados a receber as sobras, junto às fogueiras noturnas. E foi assim que, em face da necessidade, a exceção acabou por se transformar em regra: da caçada à coleta, essa mudança levou-o, consequentemente, a conquistas diversas daquelas praticadas pelas antigas crenças na magia simpática. No decorrer disso, o pastor constatou que as sementes deitadas ao solo, após as chuvas, possibilitavam melhor aproveitamento, enquanto na maior parte do ano a perda era quase sempre grande. Na verdade, estava sendo verificado que, sob o signo da fome,  o pastor e o agricultor tinham vidas diferentes. Agora, já não bastava comungar a semente e exercitar a magia. O agricultor ( pastor de sementes), precisava entender o comportamento da natureza e prever, sem o que não alcançaria sucesso e morreria de fome. A transformação do coletor em agricultor criou nele a necessidade de registrar a passagem do tempo. Este é o momento que constitui a perda do paraíso ancestral, onde cada indivíduo viu-se condenado a produzir o seu alimento diário e dos seus no entorno, com o suor do próprio rosto.










sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Ao meu desejo de morar em prédios




Aqui acesso uma chave – visualizava alguma imagem nas águas da minha bacia.

 Queria o encontro, estar junto de outras crianças, algo que me tirasse da solidão cósmica – frente ao aberto algo devia doer – sinto. Mas o que é meu me é arraigado – dentes numa boca que traga e lambe as perguntas de um déjà vu. Olho para isso e vejo que sonho não é.Meu filho mede uma pulseira no meu braço e meus instintos me levaram aos devaneios – mana de um livro cor terra. Quando pequeno imaginava-me morando num prédio, desejava, imaginava-me morando com uma galera, como via nos filmes.  Eu andava na rua, pessoas como eu na minha frente. Vivi isso como se já tivesse vivido, vi como se já tivesse visto.

Não posso comprar as teorias neuro-lógicas e psicoanalíticas sobre os déjà-vus, algo insondado habita atrás desse vapor.
                 fogo dentro de uma água tecelã de tudo, um vapor visto, energia e vapor – toda energia atrai alguma coisa. Esta energia é responsável por atrair  as matérias a nossa volta. Sinto que esta energética atraiu as matérias de meu presente. O que eu imaginava quando eu desejava morar num prédio, é responsável pela minha realidade no presente.


Ali  atrai meu destino/relaidade?!

Para os dias no chão de ardósia e tudo espalhado




Quando vejo a imagem, me aproximo até lambuzar a cara. Ontem guiei um cego que me segurou no ombro até a rua Íris sentido bosque da Saúde: ralei o queixo nessa areia, mas peguei esse jacaré – onda sob o peito.
 Mesmo correndo o risco de ser um escravo – aquele que se pergunta sobre a vida -, gostaria de saber desse zoom nas imaginações e sobre as memórias de futuro, pois ainda só posso dizer que é preciso viver o delírio, mesmo que não baste ao círculo.
- Tá bom, o ente mais próximo de nós, o nosso duplo – duplo do nosso ser duplo – que em projeções cruzadas sempre se anima.
É assim que conhecemos sobre isso, “nos nossos devaneios lúcidos, uma espécie de transferência interior nos conduz para além de nós mesmos, para um outro nós mesmos”.
Apenas siga-os.







Do oriente, homenagem à grandeza da casa! 
Do sul, homenagem... ! 
Do ocidente, homenagem... ! 
Do norte, homenagem...! 
Do nadir, homenagem...! 
Do zénite, homenagem...! 
De todas as partes, homenagem à grandeza da Casa!

Reservatório de Soma, lugar de Agni
residência e morada das esposas, morada dos Deuses, és tudo isto, ó Deusa, ó Casa.

só quero a cidadania de deitar na grama da praça
respirar fundo e não aderir a ansiedade pública
vai chover o dia todo
e que seja assim por um bom tempo

meu filho tem o cabelo da cor de minha barba
o vermelho reflete nas poças de água

quando se pensa abre-se um leque
matar saltar permanecer
abandonar e vagar

numa penumbra a mão trinca
não é ela quem escolhe a carta


quem desenha um círculo sonha um ventre e quem desenha um quadrado constrói um refúgio - Bachelard - ver o complexo de Jonas