Se de cada livro lido se puder
escrever outro, a felicidade estará posta. Se de cada sensação de impedimento,
for construído algo, aí estará posto um homem completo. Até as casas parecem
ser uma construção daqueles que, ou por imposições alheias, ou por desejo,
vontade e cansaço, foram impedidos de seguir e andar. Se diante de cada
nervosismo e irritação, se puder parar, respirar fundo, escrever, criar e
construir algo, aí estará um homem maduro e feliz.
Parar num tempo lentificado,
substituindo a aceleração videoclíptica dos acontecimentos, por uma cena
demorada de Tarkovski, já é em si um ganho de espaço. Um lastro nos afunda e
nos estende em vibrações que em esferas
nos alargam para as outras casas e ruas
do bairro, até alcançarem os outros bairros e assim se aumentam sucessivamente,
uma esfera seguindo a outra. Uma antena radiadora que emana as ressonâncias do
momento. Dínamo e cristal se fundem num teste-teste-som- teste de um estado crístico
comunicável. Prazer comunicado é arte.
Sim, é percebível que a palavra devaneio
ainda é um ícone existencial por estar, em nosso tempo, preenchida de vazio e
repleta de vacância por todos os lados, como uma casa vazia, abandonada a anos
numa zona rural, ilhada no centro de um sítio também vazio e órfão de vizinhos.
Esta palavra a ser reocupada, está presente no cerne dos atos mais frutíferos –
frutíferos por estarem ligados a uma movença que alia o desejo da vontade “ingênua”,
advinda dos rompantes incontroláveis e primitivos da imaginação, ao ato da
realização material que se manifesta num pacto de dureza com a realidade
espacial -, assinalando-nos que um ganha pão que realmente de pão para a alma e
para a sua habitação, só virão deste estágio.
Independente de termos pouco, não
termos nada para dar ou não darmos nada do que temos, o que temos de mais
arraigado e certo são as imaginações. É visto que as imagens são inexoráveis,
velozes, vem e vão à revelia e, em muitos de seus aspectos, são sequestradoras,
dominadoras e até insuportáveis. Escrevê-las é o modo de suportá-las, dar-lhes vazão
e dignidade de uma existência material dura e fixa na realidade. Parece que somente
a escrita e a arte conseguem sustentá-la no estado de intersecção entre o natural
da imagem-dentro, para o estado material de imagem-realizada-fora. A escrita é
o estado da matéria que consegue conter em si o atrito seccional da imaginação,
fazendo-se num recuo, que a faz realizar-se somente no estado de imagem-dentro,
onde a sua extensão – entre o escrevente e o legente – é friccionada, sendo realizada
e realizável no estágio gasoso da imaginação que foi partilhada, através de seu
estado de matéria-livro. É como se o livro fosse um recipiente com diversas pílulas
de gases que, após aberto e, conforme o olho vai passando por essas pílulas,
elas soltam gases que são inalados pelos legentes que, conforme o seu estado de
espírito e frequência, podem captar, editar e modular os gases e transforma-los em imagem que em seguida passam pela lente de cristal interna, que a projeta visível
na nuvem de vapor. É por isso que, a partir de Giordano Bruno, que nos diz que
a memória é atmosférica (lembrando que a palavra Atma ou Atman em sânscrito,
vinda da palavra Amê, querendo significar Alma e sopro vital, são o equivalente
a palavra grega Pneuma, que nos significa fôlego e sopro, sendo origem de
pneumático, que se refere a tudo que condiz ao ar e aos gases), fica fácil
associar um livro aos efeitos do ópio, da maconha e da mescalina, chegando a
que um livro possa corresponder, baudelerianamente, a uma espécie de paraíso artificial, pois as
suas alucinações imaginárias provocadas pela leitura, são resultados de um (arte)fício.
Vale dizer que este artifício não é de
qualquer ordem. Para fazê-lo, a saturação de cada átomo, a eliminação de tudo
que é resto e supérfluo, a inclusão do absurdo e do sórdido em todos os
momentos e fatos tonalizados, mas tradados em transparência, assim como ver vida
no vivente e o vivo no vivido, é o que nos indica Virgínia Wolf. Este mantra receituário,
seria para fazê-lo sem deixar de atingir uma espécie de fonte sagrada, onde fazer
tal arte, é viver na via onde a vida passa antes dos acontecimentos, estando no
seu brotar incessante e genuíno, antes do vi(ver) que é a vida. Com esta noção,
que poderia ser similar a de um cientista que frequenta tudo microscopicamente,
e diz como que de dentro da essência das coisas, pessoas e fatos, podemos ter novamente
um artifício mais real que a realidade. No cruzamento entre estas duas
noções(Real e realidade, ou poderia ser mundo e planeta) tudo se engravida e
pari uma criatura com a face esculpida e encarnada destas duas noções, contendo
em sua forma-rosto, assim como em sua genética óssea e estrutural, as características
genitais destas duas partes inconciliáveis, porém incondicionalmente juntas. É como
se asse artifício fizesse o ajuntamento em si do que já é junto e fizesse isso
num escancaramento daquilo que é (re)ajuntado, dando-lhe lastro, duração e
permanência, como um sopro de vida que o faz erigir-se no espaço.
Voltando as imaginações, a noção
de dentro e fora nos fazem pouco ou nenhum sentido – a não ser para alegorias
pedagógicas - , assim como dizer que a
imaginação não é um processo físico-material seria cairmos num esquecimento
velador. Talvez devêssemos dizer rapidamente sobre os inúmeros estados da
matéria que, do gasoso da imaginação até a solidez espacial, podemos verificar uma
infinição de formas. Mas não, pois além
do risco que temos de se ater desnecessariamente a questões formais, suas manifestações
trazem em si uma infinição ôntica(que nesse caso significa como o princípio
projetante se presencia ou se revela no sinal artístico) e formal que seria impossível enumerar
agora. Falamos até agora de cadernos e
livros, que através do fluxo de uma escrita ou de um desenho líquido, podem se
deparar com estados gasosos(imaginação alucinante da leitura), sólidos(
esculturas, objetos e construções arquitetônicas) e virtual(pintura, vídeo,
impressões em geral e a própria leitura, pois o virtual envolve todas as anteriores).
Enfim, sentimos que algumas das
imagens devem ser honradas com a dignidade da dureza material. Pois sentimos
vir de nossas imaginações – nosso único, maior e inesgotável bem - a fonte da prosperidade e das sugestões que
nos fazem emergir das pilhagens depressivas da vida, do mundo e do cotidiano. O
caderno é a extensão da nossa psique, é um estágio da realização material no
espaço. Ao visitar Tadeuz kantor, somos visitados pela noção de que, ao
contrário do que pensam, ele não é, nunca foi e nunca será uma máquina. É sentido
que em sua luta incessante, em seus mecanismos criadores e em seus
dispositivos, é ouvido justamente o contrário. Todos eles não passaram de artifícios
bem estruturados para nos lembrar em auto e bom som que não somos uma máquina. Foi
ele quem verificou a matéria de tudo que lhe cercava, como um catalogador de
coisas e com isso dignificou tudo que pairava abandonado pelo chão, como palavras,
pessoas e fatos, dando-lhes a voz de um escancaramento.
Se visitei Tadeuzs kantor, Tadeusz kantor me visitou. Com isso só posso
dizer que Tadeuzs Kantor não é uma máquina, nós não somos uma máquina. Não
podemos ficar nesta noção existencialista de que somos máquinas desejantes e seres
abandonados aí no mundo. Se caminhamos pela praça, a praça caminha por nós,
para nós assim como caminhamos para ela, com ela e ela conosco. Assim saltamos de
um parque onde o homem se encerra como uma máquina desejante para o aberto da
participação num mundo repleto de oblações, encontros e alteridades as quais
uma máquina encerrada na vontade seria incapaz de permanecer sã. Visto que, em
kantor, juntar coisas – objetos eleitos ao acaso, transformados em biografia
adentrando-nos como objetos biológicos, fazendo parte de nosso cotidiano afetivo,
assim como fez parte do seu, que seguem tocando a nossa casa-mental-corpórea -,
é uma verificação do pouso, permanência, estadia e duração das coisas, assim
como uma verificação das transições dos estados das coisas: de simples coisa no
espaço, para a noção de objeto, se verifica a hierarquia objetiva das coisas,
as matérias sem objetivo, objetos nutritivos e abjetos que podem virar
nutrientes na mão do artista-poeta. Nele, com seus escritos, desenhos,
esculturas, performances, pinturas e peças teatrais, tudo faz parte dos
estágios da imaginação, hora líquida morna e lânguida, ora quente borbulhante e
gasosa, até a solidez fria e dura da matéria. E tudo nos serve assim como
servimos a tudo na mesma medida, desfazendo, revendo e reconfigurando as
hierarquias do mundo onde o ser humano se coloca como um ente superior aos
outros.
Fazer do olho um receptáculo, nos
transporta para estar nos estágios iniciais da imaginação - situação comum a
todo artista que se antecipa à todo o seu trabalho artístico que é o da simples
feição de coisas: uma espécie de fazer coisas para passar o tempo que é
equivalente a suportar a vida sem sucumbir ao sentimento de estar-aí-abandonado
num mundo que, colado e inflado à frente dos olhos, jamais se esvazia, sem dar
trégua e espaço vazio. Se é que temos arte, a temos para não morrer com a
verdade, para darmos dignidade ao terror que é estar vivo nisso que não sabemos
o que é, e se nomeamos, é novamente por uma manobra artística que, através da
palavra humana, encontramos para forjar segurança e dignidade a isto que
incondicionalmente nos arrebata em mistério -, verificando suas agências que
fazem funcionar os mecanismos anteriores ao corpo e a imagem. É uma estadia anterior àquilo que move o corpo, assim como é anterior ao corpo, aos desenhos,
escritos, anteprojetos e projetos, coisas, construções e objetos. Ganha quem
conseguir fazer isso sem assassinar em si o poeta-santo que só aprendeu a
cantar rente a tudo que lhe diz frequenta-me.
Kantor, em nossa visita, sob o
signo da clandestinidade e da ilegalidade, me trouxe o livro “A construção” de Kafka.
Ao som de um acaso-objetivo a realidade executou a sua dança, foi lindo vê-la e
inevitável cantar junto ao carron do peito que se acelerou no pré-furto.
E de kantor uma oração foi
tomada:
A vida foi reorientada
a arte e os encontros acontecem lânguidos e
lentificados
e o espaço é ganho
devaneio e as percepções são realizações de imagemas*
os laços biológicos, psicológicos
e semânticos foram relaxados
energia e expressão se perdem
estamos situados num vazio
a
qualquer preenchimento
habitamos um corpo-imagma
- *imagema é a imagem que pretende aliançar em si as palavras imagem, imã, magma e gema como cola e liga