quarta-feira, 16 de setembro de 2015

# encruzilhada: ao som de um carron modesto

Se de cada livro lido se puder escrever outro, a felicidade estará posta. Se de cada sensação de impedimento, for construído algo, aí estará posto um homem completo. Até as casas parecem ser uma construção daqueles que, ou por imposições alheias, ou por desejo, vontade e cansaço, foram impedidos de seguir e andar. Se diante de cada nervosismo e irritação, se puder parar, respirar fundo, escrever, criar e construir algo, aí estará um homem maduro e feliz.

Parar num tempo lentificado, substituindo a aceleração videoclíptica dos acontecimentos, por uma cena demorada de Tarkovski, já é em si um ganho de espaço. Um lastro nos afunda e nos  estende em vibrações que em esferas nos  alargam para as outras casas e ruas do bairro, até alcançarem os outros bairros e assim se aumentam sucessivamente, uma esfera seguindo a outra. Uma antena radiadora que emana as ressonâncias do momento. Dínamo e cristal se fundem num teste-teste-som- teste de um estado crístico comunicável. Prazer comunicado é arte.

Sim, é percebível que a palavra devaneio ainda é um ícone existencial por estar, em nosso tempo, preenchida de vazio e repleta de vacância por todos os lados, como uma casa vazia, abandonada a anos numa zona rural, ilhada no centro de um sítio também vazio e órfão de vizinhos. Esta palavra a ser reocupada, está presente no cerne dos atos mais frutíferos – frutíferos por estarem ligados a uma movença que alia o desejo da vontade “ingênua”, advinda dos rompantes incontroláveis e primitivos da imaginação, ao ato da realização material que se manifesta num pacto de dureza com a realidade espacial -, assinalando-nos que um ganha pão que realmente de pão para a alma e para a sua habitação, só virão deste estágio.

Independente de termos pouco, não termos nada para dar ou não darmos nada do que temos, o que temos de mais arraigado e certo são as imaginações. É visto que as imagens são inexoráveis, velozes, vem e vão à revelia e, em muitos de seus aspectos, são sequestradoras, dominadoras e até insuportáveis. Escrevê-las é o modo de suportá-las, dar-lhes vazão e dignidade de uma existência material dura e fixa na realidade. Parece que somente a escrita e a arte conseguem sustentá-la no estado de intersecção entre o natural da imagem-dentro, para o estado material de imagem-realizada-fora. A escrita é o estado da matéria que consegue conter em si o atrito seccional da imaginação, fazendo-se num recuo, que a faz realizar-se somente no estado de imagem-dentro, onde a sua extensão – entre o escrevente e o legente – é friccionada, sendo realizada e realizável no estágio gasoso da imaginação que foi partilhada, através de seu estado de matéria-livro. É como se o livro fosse um recipiente com diversas pílulas de gases que, após aberto e, conforme o olho vai passando por essas pílulas, elas soltam gases que são inalados pelos legentes que, conforme o seu estado de espírito e frequência, podem captar, editar e modular os gases e transforma-los em imagem que em seguida passam pela lente de cristal interna, que a projeta visível na nuvem de vapor. É por isso que, a partir de Giordano Bruno, que nos diz que a memória é atmosférica (lembrando que a palavra Atma ou Atman em sânscrito, vinda da palavra Amê, querendo significar Alma e sopro vital, são o equivalente a palavra grega Pneuma, que nos significa fôlego e sopro, sendo origem de pneumático, que se refere a tudo que condiz ao ar e aos gases), fica fácil associar um livro aos efeitos do ópio, da maconha e da mescalina, chegando a que um livro possa corresponder, baudelerianamente,  a uma espécie de paraíso artificial, pois as suas alucinações imaginárias provocadas pela leitura, são resultados de um (arte)fício.

 Vale dizer que este artifício não é de qualquer ordem. Para fazê-lo, a saturação de cada átomo, a eliminação de tudo que é resto e supérfluo, a inclusão do absurdo e do sórdido em todos os momentos e fatos tonalizados, mas tradados em transparência, assim como ver vida no vivente e o vivo no vivido, é o que nos indica Virgínia Wolf. Este mantra receituário, seria para fazê-lo sem deixar de atingir uma espécie de fonte sagrada, onde fazer tal arte, é viver na via onde a vida passa antes dos acontecimentos, estando no seu brotar incessante e genuíno, antes do vi(ver) que é a vida. Com esta noção, que poderia ser similar a de um cientista que frequenta tudo microscopicamente, e diz como que de dentro da essência das coisas, pessoas e fatos, podemos ter novamente um artifício mais real que a realidade. No cruzamento entre estas duas noções(Real e realidade, ou poderia ser mundo e planeta) tudo se engravida e pari uma criatura com a face esculpida e encarnada destas duas noções, contendo em sua forma-rosto, assim como em sua genética óssea e estrutural, as características genitais destas duas partes inconciliáveis, porém incondicionalmente juntas. É como se asse artifício fizesse o ajuntamento em si do que já é junto e fizesse isso num escancaramento daquilo que é (re)ajuntado, dando-lhe lastro, duração e permanência, como um sopro de vida que o faz erigir-se no espaço.

Voltando as imaginações, a noção de dentro e fora nos fazem pouco ou nenhum sentido – a não ser para alegorias pedagógicas  - , assim como dizer que a imaginação não é um processo físico-material seria cairmos num esquecimento velador. Talvez devêssemos dizer rapidamente sobre os inúmeros estados da matéria que, do gasoso da imaginação até a solidez espacial, podemos verificar uma infinição de formas.  Mas não, pois além do risco que temos de se ater desnecessariamente a questões formais, suas manifestações trazem em si uma infinição ôntica(que nesse caso significa como o princípio projetante se presencia ou se revela no sinal artístico) e formal que seria impossível enumerar agora.  Falamos até agora de cadernos e livros, que através do fluxo de uma escrita ou de um desenho líquido, podem se deparar com estados gasosos(imaginação alucinante da leitura), sólidos( esculturas, objetos e construções arquitetônicas) e virtual(pintura, vídeo, impressões em geral e a própria leitura, pois o virtual envolve todas as anteriores).

Enfim, sentimos que algumas das imagens devem ser honradas com a dignidade da dureza material. Pois sentimos vir de nossas imaginações – nosso único, maior e inesgotável bem -  a fonte da prosperidade e das sugestões que nos fazem emergir das pilhagens depressivas da vida, do mundo e do cotidiano. O caderno é a extensão da nossa psique, é um estágio da realização material no espaço. Ao visitar Tadeuz kantor, somos visitados pela noção de que, ao contrário do que pensam, ele não é, nunca foi e nunca será uma máquina. É sentido que em sua luta incessante, em seus mecanismos criadores e em seus dispositivos, é ouvido justamente o contrário. Todos eles não passaram de artifícios bem estruturados para nos lembrar em auto e bom som que não somos uma máquina. Foi ele quem verificou a matéria de tudo que lhe cercava, como um catalogador de coisas e com isso dignificou tudo que pairava abandonado pelo chão, como palavras, pessoas e fatos, dando-lhes a voz de um escancaramento.

Se visitei Tadeuzs kantor,  Tadeusz kantor me visitou. Com isso só posso dizer que Tadeuzs Kantor não é uma máquina, nós não somos uma máquina. Não podemos ficar nesta noção existencialista de que somos máquinas desejantes e seres abandonados aí no mundo. Se caminhamos pela praça, a praça caminha por nós, para nós assim como caminhamos para ela, com ela e ela conosco. Assim saltamos de um parque onde o homem se encerra como uma máquina desejante para o aberto da participação num mundo repleto de oblações, encontros e alteridades as quais uma máquina encerrada na vontade seria incapaz de permanecer sã. Visto que, em kantor, juntar coisas – objetos eleitos ao acaso, transformados em biografia adentrando-nos como objetos biológicos, fazendo parte de nosso cotidiano afetivo, assim como fez parte do seu, que seguem tocando a nossa casa-mental-corpórea -, é uma verificação do pouso, permanência, estadia e duração das coisas, assim como uma verificação das transições dos estados das coisas: de simples coisa no espaço, para a noção de objeto, se verifica a hierarquia objetiva das coisas, as matérias sem objetivo, objetos nutritivos e abjetos que podem virar nutrientes na mão do artista-poeta. Nele, com seus escritos, desenhos, esculturas, performances, pinturas e peças teatrais, tudo faz parte dos estágios da imaginação, hora líquida morna e lânguida, ora quente borbulhante e gasosa, até a solidez fria e dura da matéria. E tudo nos serve assim como servimos a tudo na mesma medida, desfazendo, revendo e reconfigurando as hierarquias do mundo onde o ser humano se coloca como um ente superior aos outros.

Fazer do olho um receptáculo, nos transporta para estar nos estágios iniciais da imaginação - situação comum a todo artista que se antecipa à todo o seu trabalho artístico que é o da simples feição de coisas: uma espécie de fazer coisas para passar o tempo que é equivalente a suportar a vida sem sucumbir ao sentimento de estar-aí-abandonado num mundo que, colado e inflado à frente dos olhos, jamais se esvazia, sem dar trégua e espaço vazio. Se é que temos arte, a temos para não morrer com a verdade, para darmos dignidade ao terror que é estar vivo nisso que não sabemos o que é, e se nomeamos, é novamente por uma manobra artística que, através da palavra humana, encontramos para forjar segurança e dignidade a isto que incondicionalmente nos arrebata em mistério -, verificando suas agências que fazem funcionar os mecanismos anteriores ao corpo e a imagem. É uma estadia anterior àquilo que move o corpo, assim como é anterior ao corpo, aos desenhos, escritos, anteprojetos e projetos, coisas, construções e objetos. Ganha quem conseguir fazer isso sem assassinar em si o poeta-santo que só aprendeu a cantar rente a tudo que lhe diz frequenta-me.

Kantor, em nossa visita, sob o signo da clandestinidade e da ilegalidade, me trouxe o livro “A construção” de Kafka. Ao som de um acaso-objetivo a realidade executou a sua dança, foi lindo vê-la e inevitável cantar junto ao carron do peito que se acelerou no pré-furto.

E de kantor uma oração foi tomada:

A vida foi reorientada
a  arte e os encontros acontecem lânguidos e lentificados
                                                                                           e o espaço é ganho
devaneio e as percepções são  realizações de imagemas*
os laços biológicos, psicológicos e semânticos foram relaxados
energia e expressão se perdem
estamos situados num vazio
                                          a qualquer preenchimento
habitamos um corpo-imagma






- *imagema é a imagem que pretende aliançar em si as palavras imagem, imã, magma e gema como cola e liga 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015


A construção - Kafka: casa e veículo








pedro na temakeria



permanecer na criança: pista pública de skate de dedo
O desenho-texto nunca se queixa por pai ou por mãe
    

deus está sorrindo
é visto no rosto dos mendigos

ferros contorcidos na descontinuidade
sulcos na esfera

uma manobra a mais e os rumos dizem

permanecer aí basta



Um timoneiro disse que sob o efeito do ayahuasca ele pode ver a integração do mundo e que só iremos evoluir quando todos tiverem a voz e falarem por igual

Dioniso é um deus que só se manifesta se todos dançarem juntos

já aconteceu a todos nós, diante de um espetáculo novo, perguntarmo-nos se já assistimos a ele
Lembrança do presente e memória de futuro

E o nosso destino e a nossa realidade de agora tem o cheiro dos devaneios de quando éramos criança
poeira de futuro é alma

seguimos no faro de todas as antecedências 

Visita

:um estágio da memória


Mechemos com a matéria da casa(objetos biológicos), entramos em contato com a nossa memória(energia atmosférica) e ficamos desnorteados. Estados que supostamente – suposições de uma vida diurna – são paradoxais e contrários, se juntaram e se tornaram contemporâneos. A vida e a morte, o passado e o futuro, o novo e o antigo se mesclaram causando uma suspensão psicológica - perca da noção estabilizada do tempo e do espaço - onde fomos arrebatados por uma espécie de incompletude do sujeito – noção real e constante, mas que tomou gravidade por sua extensão ser percebida de fronte no decorrer dos acontecimentos. Estivemos em contato com o ser e pudemos confessar que isso nos desestabilizou e nos atordoou tonteadamente. O sujeito (eu) catou cavaco e nisso recuou perante a passagem-lastro daquilo que permeava. Sentimos o dizer de uma hiper-presença e que uma inominável presença nos rodeia.

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uma casa numa árvore que anda




Embeiçamento: escritura e desenho imbricados
natureza nua, a pura visão
passagem aberta ao inato: um desenho-texto nunca se queixa

ele é uma operação cirúrgica: ferir, costurar, cicatrizar, curar.

Subjétil

Na cogestação do objeto perseguido: entre o jazer e o lançar.

Foi depois de sua pintura se desprender da parede que resolvi aceitar que este dia eu estive esburacado. Uma rolha tombada e manchada do vinho que bebemos três dias atrás quando saudamos as fitas cassete catalogadas por minha avó, uma a uma. Estendemos a colcha necromãntica e ficamos lendo o que devemos fazer para dar uma boa sugestão de mundo.Mas só hoje estive rente como se entrasse em digestão. Talvez por isso comi e comi tentando tapar este buraco e no desejo de não ver que ele era sentido no estômago, mas de uma ordem ontológica, gastei uns trocados na máquina de ursos de pelúcia: sempre uma garra frouxa que desce mas nunca fixa nada, pega  mas sempre escapa. Hoje foi de cerrar os olhos e isso me tirou das distrações possíveis, pois tropecei duas vezes no mesmo lugar. Ter uma pergunta onde a resposta teima em não obter matéria e lastro é muito grande. A lembrança de seu presente é uma franja sobre o futuro e me suspende a cada tentativa de suprimi-la em resposta dada. Esta é a inquietude e esta é a dor que faz beber sem sede.
Troquei ser reconhecido por realizar um bem ao maior número de pessoas e senti que a gancheta andou uma casa.  O último a quem fiz a mesma-pergunta-única de sempre , me disse que bastaria me dizer, para responde-la, que o poder informador dos materiais transmitidos pelos órgãos dos sentidos, o poder que converte em objetos precisos e determinados as vagas impressões provenientes do olho, do ouvido, de toda a superfície e de todo interior do corpo é a lembrança.

Está na lembrança, venho sondando as suas possibilidades sem cessar. Talvez por isso, toda vez que penso em colocar a nossa aproximação e o nosso frequentar-se em risco, o meu corpo vibra, tremendo como se quisesse se desfazer perante a colagem do espaço-tempo. A lamela do tempo passa cantando sua canção fria, mas por enquanto insistirei nesse ponto. E toda vez que pensar em mudar de casa, mudarei tranquilo, pois o barro sempre será o mesmo. O habitante da origem jamais abandona o lugar.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Venta
e esta palavra honrada conquista o inútil
na porta que range - noção de mundo -
a morte contemporânea a vida
grau zero ou antes

e cobertor é um ente bifurcado que aquece o invadido