domingo, 21 de dezembro de 2014

Para quando pedi a Deus que nunca me deixasse ver nada





Sabes que sempre tive medo do paranormal, como quem teme brilhar e ser grande no seu melhor. Me lembro que a primeira vez que fui a um terreiro, me caguei nas calças. Só de me lembrar me vem o cheiro de defumação habitar minhas narinas – era dia de Cosme e Damião – cheiro de pipoca doce.
Me lembro que foi em algum momento de minha infância, quando tomado por uma paúra sobre o desconhecido, que me vi obrigado a lhe dizer através de minha boca. Visualizo a cena que, em meio a multidão de vozes, não temi o escuro, mas sim o que tinha dentro dele.
Lhe confesso que, apesar de sua serventia, isso não me privou de escutar e tudo que não vejo, pareço ouvir em dobro. São vozes, sussurros, vultos e zuncadas no pé do ouvido que me fazem no trato de um deus que diz e se desdiz. Dessa escuta trago muitos frutos que por si são –  pedras que trago para o meu tato e para o tato de meus semelhantes.  Sinto mediar transações entre o mundo visível e invisível, assim como eu mediava os confrontos naturais do jardim em minha infância. Transpasso por esses mundos audíveis e nisso sou atentado a tentar sempre uma cesta cheia. Independente da posteridade, tempo ou espaço, isso que lhe compartilho aqui nesta carta me faz conceber esse cumprimento: se não o fizesse talvez me perderia nos sons que capto. Na crackolândia vejo vários médiuns padecendo, invertem a calcificação e queimam o cristal errado.
Uma vez, um caboclo me disse que minha missão nesse plano é espiritual e que o resto devo levar com calma, mas que jamais poderia decair disso, caso contrário iria sucumbir. É talvez por isso que sintonizo tais frequências e luto em persistir.
Ah, como deve dar para perceber, perdi o medo de terreiros, assim como tantos outros, mas mesmo assim prefiro continuar sem ver – a clariaudiência já me basta para dizer e desenhar o terror de minhas imagens.
Desde já lhe agradeço por se manter firme o nosso laço, pedindo que ele permaneça assim firme, como o som é anterior aos homens e a realidade que nos cerca. Deus se manifesta mais pelos ouvidos do que pela boca e pelos olhos.

Sigamos juntos, com toda simpatia e gratidão, B.P.

À linha do trópico de capricórnio



Amiga, mesmo lhe conhecendo pouco, sinto a necessidade de lhe escrever. Saiba que não foram nos livros de geografia que lhe conheci de fato.

Eram nas viagens familiares para Itatiba que tínhamos nosso contato fundante – o primeiro real e verdadeiro. O único vestígio de sua real existência era uma placa que, ao ser vista por minha tia Irene que dirigia o fusca e ser anunciada em alto e bom som, gerava uma antenação em todos os presentes afim de te comemorar.

Depois disso era só uma leve trepidação que nos levava ao delírio e gritávamos o prazer de sua assunção.

Sua imagem me é fundadora por, além de ser de estrada, mostra a gênesis de minha atenção pelas coisas simples, invisíveis e insignificantes – comemoramos a sua imaginação que é o delírio de um outro.

Mas o maior aprendizado que trago de nossos contatos é que a concepção de planeta é imaginária. Isso me fez ver que não era uma linha que dividia os climas da terra. Isso, ao mesmo tempo que me intriga, amiga, me responsabiliza – responsabilidade de mundo – e o corpo, assim como a terra, são anatomias imaginárias: massas retilíneas  sujeitas a transformações e moldagens – cada um, a partir de seus devaneios, pode criar a sua concepção de mundo, planeta e corpo.

Fico feliz por essas imagens ainda estarem em mim, sou muito grato por elas  e por tudo que elas me fazem apreender – coisas tão óbvias e tão simples mas tão fundamentais.

É nisso que vejo a importância das crianças – são elas que nos fazem sorrir, alargando as linhas estabelecidas e comemorando as coisas simples da vida.

Prometo-lhe, a partir de hoje, que irei deitar sobre você, não por nada, mais por nada mesmo, só para conquistar mais essa inutilidade básica.

Me  despeço dizendo que prosseguiremos nisso juntos, muito obrigado,
do sempre seu, Bruno Pastore.

O nome arte é redundante para dizer de uma cosmicidade, pois toda arte pretende este trabalho e, sendo cosmicidade um nome demasiadamente vago, ele dá a oportunidade de abranger inúmeras possibilidades e assuntos, podendo ampliar e assim implodir a arte através desse alargamento.
Aqui foi abandonado o nome arte.
Apresentar estadias giratórias, por serem singulares e universais, é o trabalho objetivo (trato aqui de objetos) da cosmicidade. São objetos gonzos que acessam a memória cósmica por terem uma fidelidade psicológica, pois não se alinham com as exatidões da memória social, fazendo parte de um acordo íntimo e ancestral. Por serem dobradiços, atravessam o acordo social e revisitam o pertencimento do mundo - não o mundo do manejo, dos costumes e dos comandos sociabilizados, sim do mundo comandado pelo sol. É no esvaziamento do mundo que nos impele contra esse mundo do sol que comanda, que surgem estas ferramentas que servem para renovar o ser, dar vida e reconcilia-lo com o que nos acolheu primeiro.
Fazer visitar esta primeira acolhida - abertura ancestral onde o sol é o único dominador -, e fazer ressoar os dinamismos de entrada no mundo é a agência de tais objetos de cosmicidade.
Nessa abertura o ser se vê apto a expandir-se a cada revigoramento.
Fazer visitar este mundo da primeira vez onde moram as lembranças da infância, dando-lhes vida numa memória experimentada, afim de testemunhar o eterno de tudo: sol, céu, o cheirar e o andar, fazendo estar presente em todas as ações de existência que nos são anteriores e permanentes, é uma de suas maiores pretensões.
Fazendo uso das exatidões dos universos imaginados, assinalando a vida de maneira ilustrada como a infância é, fazendo vê-la e revê-la com suas cores e seus cheiros, esta cosmicidade visa o acolhimento e a visualização do entorno ressoante, através de uma terreno-sondagem dos universos íntimos e êxtimos.



Visitei uma contradição

Chegamos num estágio onde a palavra não conta e tudo precisa ser tangível, documentado e visto fisicamente. A expressão "não fale da coisa, mostre a coisa", impera numa postura mensurante onde a materialidade é exigida. Toda comprovação material é materialista.
Um salto seria decorar e contar verbalmente para as pessoas as coisas de que tenho acessado.
Essa seria a desmaterialização disso que trabalha.
Sinto que tudo que se mostra através de mim poderia ser visto e compartilhado sem a dependência dos objetos, pois eles por si são estandartes simbólicos para a transmissão de motivos e costumes que poderiam transitar e existir sem eles. Eles se dão na medida em que a nossa sociedade ( incluo minha educação prática/criativa) necessita de documentos mensuráveis. Essa é a prova que meu corpo se contradiz por provenir de um materialismo e cultuá-lo, fazendo uso dele para atender as demandas de minha ideologia que insistem em propor uma desmaterialização da vida.

Eis a encruzilhada.

Meus devaneios me exigem a dignidade de escritura, pois a medida que vazam, produzem excrementos e resíduos que dão formas a essa exceção. Tenho que cumprir incondicionalmente.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014



adentrando a eira da palavra costureira, doceira, boleira, cozinheira e marceneira




sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

cartas aos devaneios de infância

http://www.youtube.com/watch?v=gt9PFB-C1Dg

Sobre o abandono da arte de acolhida e o escave de uma cosmicidade






                                        Cosmicidade

Foi quando consegui buscar os limbos das sombras memoriais de minha infância, transformando-as em luz, em água tranquila e lenta, que acessei, nessa reforma, as espessuras de um nascimento.

A arte aqui tomou um sentido expandido - sendo arte só por falta ainda de outro termo que diga dessa agência -, funcionando para fazer e refazer estas camadas - refazendo o sentimento de acolhida e a sensação de estar em casa. Ela funciona como a própria natureza da terra, evidenciando - e por isso fornecendo - inúmeras oblações e reservas nutritivas - como uma espécie de cotilédone placentário. Só assim foi possível saltar do negativo para o positivo de estar no mundo não como um ser abandonado sem amparo, e sim como um ser acolhido no anteparo terrestre. Esse processo é semelhante ao das folhas embrionárias que, com reservas nutritivas, fornecem alimentos aos embriões contidos nas sementes. Simplesmente ver e falar para que essas camadas de nutrição sejam vistas, é o trabalho desta arte de acolhida e acolhedora. O radicante de sua voz é exaltar, fazer e refazer a goma ligante e as energias de cada fibra das peles - aqui identifico sete - entre as divisões sub-uterinas do mundo, do planeta e por que não, do cosmos: tudo isso, aqui, chama-se casa.

Na impossibilidade de abandonar o espaço, estando mergulhado na tarefa terrível de ser num sistema universo, nasce a possibilidade de recolher-se no seio da vida que é a Vida De. Esse momento é visto como o momento negativo do morar que determina um recolhimento de inversão - uma presença junto a tudo do entorno, sugerindo amigamentos, elegias, elencamentos, evocações, exclusões, repulsas, atrações e aceitações, tudo isso sob o signo da gratidão -, e jamais um sentimento de uma posse-eco, mas sim de pertencimento por conter um recuo diante de tudo. Isso implica - implica por sugerir um arrebatamento incondicional, sem desvio - um acontecimento novo - estado de relação com o que ainda não vivemos e não nos é. Essa relação com o novo, com esse Outrem é o que nos acolhe na casa, na presença discreta do feminino. Para que a arte de acolhida – nome-forma provisório da expressão de uma cosmicidade - possa ser vista e realizada discretamente como a essa presença feminina é, é preciso rejeitar a posse, a autoria, como forma de doação - anulação da mão que assina -, pois só assim é possível ver e apresentar - até quando seja necessário - as coisas em si. Para atingir esse não eu, é preciso se situar acima do comprometimento pessoal, se pondo em questão constantemente ao abordar esse Outrem indiscreto que se apresenta. Abordá-lo é recepcioná-lo de cima e jamais de fora, não com o olho que mapeia e se perde na tentativa de esquadrinhá-lo, sim com a medida mesma que ele sugere.


O nome arte é redundante para dizer de uma cosmicidade, pois toda arte pretende este trabalho e, sendo cosmicidade um nome demasiadamente vago, ele dá a oportunidade de abranger inúmeras possibilidades e assuntos, podendo ampliar e assim implodir a arte através desse alargamento.
Aqui foi abandonado o nome arte.
Apresentar estadias giratórias, por serem singulares e universais, é o trabalho objetivo (trato aqui de objetos) da cosmicidade. São objetos gonzos que acessam a memória cósmica por terem uma fidelidade psicológica, pois não se alinham com as exatidões da memória social, fazendo parte de um acordo íntimo e ancestral. Por serem dobradiços, atravessam o acordo social e revisitam o pertencimento do mundo - não o mundo do manejo, dos costumes e dos comandos sociabilizados, sim do mundo comandado pelo sol. É no esvaziamento do mundo que nos impele contra esse mundo do sol que comanda, que surgem estas ferramentas que servem para renovar o ser, dar vida e reconcilia-lo com o que nos acolheu primeiro.
Fazer visitar esta primeira acolhida - abertura ancestral onde o sol é o único dominador -, e fazer ressoar os dinamismos de entrada no mundo é a agência de tais objetos de cosmicidade.
Nessa abertura o ser se vê apto a expandir-se a cada revigoramento.
Fazer visitar este mundo da primeira vez onde moram as lembranças da infância, dando-lhes vida numa memória experimentada, afim de testemunhar o eterno de tudo: sol, céu, o cheirar e o andar, fazendo estar presente em todas as ações de existência que nos são anteriores e permanentes, é uma de suas maiores pretensões.
Fazendo uso das exatidões dos universos imaginados, assinalando a vida de maneira ilustrada como a infância é, fazendo vê-la e revê-la com suas cores e seus cheiros, a cosmicidade visa o acolhimento e a visualização do entorno ressoante, através de uma terreno-sondagem dos universos íntimos e êxtimos.
Trata-se também, de um jogo de correspondências - fazer uso das ilusões como um adentramento na realidade. Este trabalho é fazer a realidade – trampolins para o processo de ilusão -, corresponder aos devaneios e assim, fazer possível manter-se no real.

Essa empreitada não trata de representações oníricas e nem de substâncias que se revelam no brilho. Opacidade, musgo e terra, são palavras que correspondem mais a este trabalho de recolher a realidade para dentro dos devaneios, transmutando-a nessa cobertura, para depois estendê-la novamente, renovada e flexível, aberta a alternâncias e conjugações – forças aéreas e terríveis como a água parada de um lago que, preso na terra, reflete o céu. As nuvens caminham dentro do lago, como o lago anda com as nuvens. È por isso que nesse lago de água parda, não é a beleza o seu elemento. Fora o seu reflexo, pouco brilho existe no verde - musgo de sua água velha, enlameada, onde poucos ousariam mergulhar.  Nessa água, é a velhice que reina oposta a eterna juventude, uma velhice que é renovadora por se tratar de uma água medicinal, medicinal por se tratar de uma água velha , e velha por nela se dar a impressão de que ela sempre esteve ali. Aqui, não são as belas aparências do mundo interpretável dos sonhos - que seguem o encalço do mundo desperto, positivo e cognoscível - que reinam, a elevação da verdade e a perfeição, são estados distintos dessa agência. Nela, não se acessa um deus artístico e lacunarmente diurno, pois em sua essência, lhe faltam limites – a aparência ilude, engana e, sem delimitações, não ensina nada por somente esbarrar agitações selvagens, contradizendo a sabedoria calma do artista. É impossível ser solar e calmo, ao mesmo tempo que colérico e arredio, por isso, é a tentativa de permanecer nessa conjugação que gera uma embriaguez arrebatadora e repousante ao mesmo tempo. É essa embriaguez incondicional que nos faz tocar o homem natural e ingênuo, até o esquecimento de si, que é oposto à consagração da beleza. Esse rompimento com o cordão umbilical “consigo”, é o que faz desaparecer inteiramente o princípio de individuação, e com isso, a subjetividade se desfaz diante de um impulso geral, natural e universal. É nessa reconciliação com o sempre oculto da natureza, nos fazendo evidenciar uma pareia e beber de seus dons mais terríveis (tratamos aqui de terra), que conseguimos ir além de nossa ligação com os homens-imagens com seus desejos, tarefas, prazeres e dramas. Nesse ir além, todas as delimitações, junto com o arbítrio, desaparecem diante do hálito da fenda ancestral e anterior aos acordos. É o manter-se farejando esse hálito, que faz espocar e manejar as imagens que sugerem a laboração desta cosmicidade.

Conceber e adentrar o âmbito disso que brota, exige o desprendimento das educações e, principalmente de dogmas que já dizem, cercados por todos os lados com palavras, sobre o natural e a natureza - como se desaprendêssemos a andar e falar. Só assim, encantado, ingênuo, borrado e simples, é possível – a partir de si, e não de falas externas, fazendo viver em si mesmo o que é sugerido somente em potência imaginativa - acolher essa harmonia de mundos e sentir algo diverso que soa sobrenatural. É por isso que não é possível falar em arte, nem de poder artístico – nem mesmo na voz de um artista -, pois é a natureza sem nome que se apresenta opaca e o caminhar se torna tão extasiado que tudo é obra de arte, deixando de se fazer necessária.
Nessa correspondência cósmica, os corpos são trabalhados – verificados, recortados, ajuntados, diagramados, justapostos -, tratando-se de colagens, pinturas e esculturas que rediagramam a vida num constante reposicionamento, nos deixando para a natureza, como a tinta é para o pintor.

Os devaneios são naturais e, se os devaneios são o jogo da natureza com o homem, os trabalhos que se dão numa cosmicidade, são frutos do jogo do homem com seus devaneios. Por isso é necessário, o tempo todo, recuar e ausentar a voz do homem que fala, pois este estado, se não experimentado em si próprio – e consecutivamente por si próprio -, não passará de uma alegoria. Só se pode ser semelhante e comungar dessa conjugação, quando se devaneia o devaneio como devaneio. Pois é assim que cada um se sabe, prescindindo ao seu modo, podendo o barco partir de qualquer porto. É assim que se pode ser servidor do devaneio.

o barro da palavra bairro

todos os mapas mentem
topologia afetiva da infância




rir é fácil
o palhaço repentista de chapéu azul
divulga o trem de suas entranhas
arranha a placenta do escondido e tudo fica preso por um vento:
a epifania citadina
um guarda chuva afetivo
e as fronteiras que mastigam a célula
mão na raiz bambu lã e caranguejo
lesmam uma saúde cósmica

...

tudo é uma graça
abrir os olhos mesmo que essa não seja a matriz
é uma via de passagem
o rosto calmo de minha avó cantando para a chaleira

é a respiração falando
em tempos de abundância


...

quando a fala se agride
carrega em si algo que se revista e distrata,
que distrita e nada é revisitado

a história o livro a fotografia a geografia e toda separação dos povos
o sujeito é um cavalo nóia
todo já caído por terra




um céu parelheiro relata
 uma onça  dançando no baixo ventre
e tudo pedreira uma música mais calma



tem dados momentos na vida que miramos a parte baixa da calçada
tão ingrime como um despenhadeiro
depois de toda dispersão um recolhimento

e todos os níveis do chão miram o céu



albumina






vi que eles fazem muita arte, como se tocassem piano.
até é agradável, mas não é o correr dos rios nem o murmúrio das árvores.
para que arte e para que é preciso ter piano?

o melhor é ter ouvidos e amar a natureza

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

a noite adentro meu canto
um amigo que me conhece de sobrenome

e que diz que sou uma eterna criança
um deus que faltava
e o humano que é natural por ser divino
sorrir e brincar
e é por isso que tive esta família rasurada
advindo de uma invasão
aceito
e que só duma profanação eu poderia ter vindo

os cupins estão a comer
e apesar dê

vejo as plantas da casa natal
pincel cravado na terra
as pontas dos meus dedos agarram o cimo
 onde o sol mostra a cabeça

trago ao universo ele próprio