Fim de ciclo,
sucateamento e a impossibilidade de uma paridade.
Sexta feira, dia dois de
dezembro de 2016, encerrou-se mais um ciclo. A vida me desligou do programa Fábrica
de Cultura que é uma empreitada do governo mundial para aculturar povos,
conduzir a sensibilidade de todas as pessoas e evitar qualquer tipo de
sublevação que impeça o plano de globalização. Nele, o que chamam de
profissionalização artístico-cultural, não passa na verdade de uma inclusão quase
que forçada numa espécie de palácio de cristal que, sob a face de vários nomes
como mundo, cristianismo, mercado, capitalismo, socialismo, patriarcado, ou
simplesmente arte, nos vendem a dominação camuflada de segurança, saúde,
educação e conforto. Este projeto vem sendo implantado há séculos e hoje chegou
a uma fase de sustentação ontológica ao quais seus aparelhos não precisam mais
existir. Daí vem os sucateamentos dos espaços de educação e cultura (formas
onde o ser é moldado que se tornaram supérfluas) e as sanções nas áreas da
saúde e abastecimento. Logo, a demissão em massa de educadores que não condizem
com esta ideologia de dominação do ser se torna natural. Por isso é impossível esconder
certo repúdio a tudo que compactua com esta tesoura estrábica que vem
aumentando os impedimentos investindo, entre outras sandices, mais em limpeza e
vigilância - via empresas terceirizadas -, do que numa relação pedagógica que
realmente valha. Parece-nos que tudo funciona para impedir uma revisão do que
nos é caro como cultura, educação e saneamento básico. Continuam nos impedindo de
rever o modo como comemos e cuidamos de nossos dejetos, até como nos
relacionamos e formatamos os espaços onde vivemos. Este é o funcionamento que
silencia a pergunta que cada vez mais ecoa em nossas flutuações cotidianas:
como ainda suportamos, por que ainda compactuamos com coisas que há tempos nos
distanciam daquilo que somos?
Na impossibilidade de fazer parte deste planejamento
sinistro, sempre tentei deixar que as experiências dentro do ateliê (onde
durante um ano foram dedicadas sessenta e oito horas mensais) se deliberassem
por si. O “recuo do educador”, imprescindível para abandonar as propostas já estipuladas
pelo projeto-pensado-sinistro, foi o eixo central para o "deixar surgir".
Visando sempre o estar junto, com o mínimo de intervenções, o inato ao grupo pôde
começar a surgir frente aos encontros e o espaço. Daí, e somente daí é que poderíamos
fazer um pacto ético não mais com o projeto-pensado e sim com as vibrações,
expectativas, desejos, tensões e alternativas criadas pelo encontro. A partir
disso, estivemos aptos a observar e apreender como criamos movimentos
individuais e coletivos de permanência no bom da vida que é cada vez mais somente
estar livre de pilhagens que impedem o seu curso com satisfação e sossego. Num constante exercitar da escuta pôde-se
criar uma "linha do futuro" com as expectativas que cada um de nós
trazíamos. Aqui aparece a primeira discordância com o projeto-pensado, onde visitamos
não mais sonhos ora individuais e ora coletivos, mas sim uma subjetividade onde
todos ficam de certa medida, entrelaçados uns às movenças dos outros. Vale
dizer que, para isso, foi importante nos desfazer do excesso de coletividade
que permeia o programa.
De tudo que vivemos o que
sinto ser mais importante e que vale ser partilhado, é que todos os encontros
incorporaram o descanso às tarefas. Nisso, as atividades verdadeiras nasciam
quando saiam do roteiro (linha do futuro que criamos em conjunto após
verificarmos os motivos que se entrelaçavam) concebido pelos participantes.
Eram nos momentos de distensão, em que ficávamos ao "para nada", que
surgiam percursos e atividades que nos faziam respirar. Estas curvas
respiratórias nos lançavam ao cerne da criatividade. Estes encontros surgiam
quando o grupo abandonava as tarefas, alegando desanimo ou cansaço que, ao
invés de serem reprimidos, eram acolhidos como sentimentos nobres. Ao acolher
estes hóspedes, aos quais a “sociedade do desempenho” vem rejeitando, éramos lançados
a capacidades especiais de transfiguração da realidade. A isso vale se juntar
aos chamados sobre Crelazer (Helio
Oiticica) e Pedagogia Devaneante(Gaston
Bachelard) onde nos é sugerido uma “melancolia ligante”, o cansaço criador
gerador do repouso onde uma ira necessária para as grandes criações transformadoras
pode ganhar espaço.
Mas ainda nos aceitamos obrigados,
nós mães, pais e educador(ae)s a conviver com instituições educacionais que não
suportam sentimentos humanos como a ira, o cansaço, o devaneio, assim como o descanso,
criação e a transformação. Frente a encontros onde tudo é dispositivo para a
emancipação (jovens e crianças tomadas pelas pulsões criadoras/transformadoras
da arte) as instituições preferem recuar, zelando mais pelo espaço e pelo acordo
imposto - alegando ainda que é para a nossa segurança e para o bem estar de
nossos filhos -, do que pelos participantes e propostas que surgem a partir dos
encontros. Ou seja, falta muito para conseguirmos bancar as crianças em estado
de arte e a arte em estado de criança.
Apesar de, é preciso
amar. Por isso só tenho a agradecer a vida por, sempre que preciso, pedalar as
eras. Agradeço a todos que conheci nesta caminhada e que levo comigo aqui
agora. Estamos juntos e, por mais que ainda permanecemos suportando esta
vida-farsa de escravos econômicos num regime democrático de aparências, pouco a
pouco somos incondicionalmente arrastados para lugares sem arranjos humanos,
sem preparo e sem domínio, onde a única medida ainda é a amizade e a vibração
do surgimento.