quarta-feira, 29 de abril de 2015

Para o menino calado e emburrado


Visitei sua imagem hoje, no café da manhã, pela boca de outrem. Para chegar mais perto de ti e raspar a cara no que está depois do que foi dito, resolvi lhe escrever. É certo que nunca me adaptei e correspondi às expectativas do mundo. Nisso há gratidão, simplesmente por saber que sempre fui intrauterino e melancólico: nostalgia daquilo que eu era antes dali. Do que é e, que estava antes daquele menino, pouco posso dizer. Jamais eu poderia antecipar com a revelação da palavra, aonde ela não chega. Mas se isso tudo aconteceu de fato, como tenho ouvido há tempos, é por que vim sob o signo de uma antecedência de ser: energia ligante e profunda de uma infância cósmica onde pude tecer relações intimas com tudo que me cercava e me constituía – recebi e abarquei tudo de chofre. E-x-t-r-a-m-u-n-d-o! era isso que os outros não sacavam. Era nisso que eu era lançado quando estava em silêncio, introspectivo e abismado, antes do mundo e dos seus acontecimentos. Nesse antemundo, ficava de canto (absor)vendo tudo acontecer em volta – tudo cinematograficamente acontecia através de mim como se meu corpo sumisse e adquirisse um estado translucido por onde tudo transpassava, ora se transformando, ora ganhando a dureza e o peso daquilo que aquilo era. Nessa gravidade eu aprendi a amar os outros e as coisas por serem elas mesmas e quando, por uma intensa fragilidade, não às suportava, me via incondicionalmente obrigado a modificá-las; quando não conseguia tal prestígio, me via obrigado a sumir do mapa. Por isso posso dizer que pouco dissimulei, e se assim foi, foi por que era de dentro arraigado à uma extimidade. Sempre fui, ao contrário do que se pensa e se diz, uma cosmo-estação: peneira arrombada e fixa naquilo que habita, como uma janela escancarada.
Amigo, se tenho alguma coisa ainda a lhe dizer, é que até hoje vejo mães, educadores e terapeutas se debaterem – todos presos aos padrões qualitativos que o palácio cristalizado sugere -, para assassinar a melancolia ligante que habita as crianças cósmicas. Por não conhecerem tal profundidade de abismo, lançam mão de acolher o outro por ele mesmo e, presos as ansiedades da exterioridade, fazem essa essência encolher-se até sumir. Lhe escrevo, acima de tudo, para honrar todos os hospedeiros deste sendo, que, por não conseguirem desenvolver  as magias da dissimulação, são lançados para fora do mundo, obrigados a vagar pelas madrugadas, habitando os banheiros públicos, buscando a mãe, adentrando em qualquer ventre, gastando essa mediunidade em qualquer fagulha que dê jeito. Tenho que lhe confessar que quando vejo um menino vagando na rua, me irmano e penso lhe dizer: ei, psiu, ei irmão, não é com uma lasca que se tapa um abismo. Mas me contenho quando lembro que nós dois sabemos que todo grande poeta e todo grande alquimista, sabe animar as substâncias de uma pedra, fazendo-lhe ditar rumos. Num esburacamento, quando nada é um rosto amistoso, elas podem sanar as dores.

Agora posso dizer, feliz, que, para fora do mundo, ou incrustado àquilo que hospedo, não dissimulei. Me despeço, alegre por poder legitimar estas felicidades, na esperança de que elas sirvam para que o mundo alargue suas arestas.
Do sempre seu, B.P.

Nenhum comentário:

Postar um comentário