Visitei sua imagem hoje, no café
da manhã, pela boca de outrem. Para chegar mais perto de ti e raspar a cara no
que está depois do que foi dito, resolvi lhe escrever. É certo que nunca me
adaptei e correspondi às expectativas do mundo. Nisso há gratidão, simplesmente
por saber que sempre fui intrauterino e melancólico: nostalgia daquilo que eu
era antes dali. Do que é e, que estava antes daquele menino, pouco posso dizer.
Jamais eu poderia antecipar com a revelação da palavra, aonde ela não chega. Mas
se isso tudo aconteceu de fato, como tenho ouvido há tempos, é por que vim sob
o signo de uma antecedência de ser: energia ligante e profunda de uma infância
cósmica onde pude tecer relações intimas com tudo que me cercava e me
constituía – recebi e abarquei tudo de chofre. E-x-t-r-a-m-u-n-d-o! era isso
que os outros não sacavam. Era nisso que eu era lançado quando estava em
silêncio, introspectivo e abismado, antes do mundo e dos seus acontecimentos.
Nesse antemundo, ficava de canto (absor)vendo tudo acontecer em volta – tudo
cinematograficamente acontecia através de mim como se meu corpo sumisse e
adquirisse um estado translucido por onde tudo transpassava, ora se
transformando, ora ganhando a dureza e o peso daquilo que aquilo era. Nessa
gravidade eu aprendi a amar os outros e as coisas por serem elas mesmas e
quando, por uma intensa fragilidade, não às suportava, me via
incondicionalmente obrigado a modificá-las; quando não conseguia tal prestígio,
me via obrigado a sumir do mapa. Por isso posso dizer que pouco dissimulei, e
se assim foi, foi por que era de dentro arraigado à uma extimidade. Sempre fui,
ao contrário do que se pensa e se diz, uma cosmo-estação: peneira arrombada e
fixa naquilo que habita, como uma janela escancarada.
Amigo, se tenho alguma coisa
ainda a lhe dizer, é que até hoje vejo mães, educadores e terapeutas se
debaterem – todos presos aos padrões qualitativos que o palácio cristalizado
sugere -, para assassinar a melancolia ligante que habita as crianças cósmicas.
Por não conhecerem tal profundidade de abismo, lançam mão de acolher o outro
por ele mesmo e, presos as ansiedades da exterioridade, fazem essa essência
encolher-se até sumir. Lhe escrevo, acima de tudo, para honrar todos os
hospedeiros deste sendo, que, por não conseguirem desenvolver as magias da dissimulação, são lançados para
fora do mundo, obrigados a vagar pelas madrugadas, habitando os banheiros
públicos, buscando a mãe, adentrando em qualquer ventre, gastando essa
mediunidade em qualquer fagulha que dê jeito. Tenho que lhe confessar que
quando vejo um menino vagando na rua, me irmano e penso lhe dizer: ei, psiu, ei
irmão, não é com uma lasca que se tapa um abismo. Mas me contenho quando lembro
que nós dois sabemos que todo grande poeta e todo grande alquimista, sabe
animar as substâncias de uma pedra, fazendo-lhe ditar rumos. Num esburacamento,
quando nada é um rosto amistoso, elas podem sanar as dores.
Agora posso dizer, feliz, que,
para fora do mundo, ou incrustado àquilo que hospedo, não dissimulei. Me
despeço, alegre por poder legitimar estas felicidades, na esperança de que elas
sirvam para que o mundo alargue suas arestas.
Do sempre seu, B.P.
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