Cosmicidade
Foi quando consegui buscar os limbos das sombras memoriais de minha infância, transformando-as em luz, em água tranquila e lenta, que acessei, nessa reforma, as espessuras de um nascimento.
A arte aqui tomou um sentido expandido -
sendo arte só por falta ainda de outro termo que diga dessa agência -,
funcionando para fazer e refazer estas camadas - refazendo o sentimento de
acolhida e a sensação de estar em casa. Ela funciona como a própria natureza da
terra, evidenciando - e por isso fornecendo - inúmeras oblações e reservas
nutritivas - como uma espécie de cotilédone placentário. Só assim foi possível
saltar do negativo para o positivo de estar no mundo não como um ser abandonado
sem amparo, e sim como um ser acolhido no anteparo terrestre. Esse processo é
semelhante ao das folhas embrionárias que, com reservas nutritivas, fornecem
alimentos aos embriões contidos nas sementes. Simplesmente ver e falar
para que essas camadas de nutrição sejam vistas, é o trabalho desta arte de
acolhida e acolhedora. O radicante de sua voz é exaltar, fazer e refazer a goma
ligante e as energias de cada fibra das peles - aqui identifico sete - entre
as divisões sub-uterinas do mundo, do planeta e por que não, do cosmos: tudo
isso, aqui, chama-se casa.
Na impossibilidade de abandonar o espaço,
estando mergulhado na tarefa terrível de ser num sistema universo, nasce a
possibilidade de recolher-se no seio da vida que é a Vida De. Esse momento é
visto como o momento negativo do morar que determina um recolhimento de
inversão - uma presença junto a tudo do entorno, sugerindo amigamentos,
elegias, elencamentos, evocações, exclusões, repulsas, atrações e aceitações,
tudo isso sob o signo da gratidão -, e jamais um sentimento de uma posse-eco,
mas sim de pertencimento por conter um recuo diante de tudo. Isso implica -
implica por sugerir um arrebatamento incondicional, sem desvio - um
acontecimento novo - estado de relação com o que ainda não vivemos e não nos é.
Essa relação com o novo, com esse Outrem é o que nos acolhe na casa, na
presença discreta do feminino. Para que a arte de acolhida – nome-forma
provisório da expressão de uma cosmicidade - possa ser vista e realizada
discretamente como a essa presença feminina é, é preciso rejeitar a posse, a
autoria, como forma de doação - anulação da mão que assina -, pois só assim é
possível ver e apresentar - até quando seja necessário - as coisas em si. Para
atingir esse não eu, é preciso se situar acima do comprometimento pessoal, se
pondo em questão constantemente ao abordar esse Outrem indiscreto que se
apresenta. Abordá-lo é recepcioná-lo de cima e jamais de fora, não com o olho
que mapeia e se perde na tentativa de esquadrinhá-lo, sim com a medida mesma
que ele sugere.
O nome arte é redundante para dizer de uma
cosmicidade, pois toda arte pretende este trabalho e, sendo cosmicidade um
nome demasiadamente vago, ele dá a oportunidade de abranger inúmeras
possibilidades e assuntos, podendo ampliar e assim implodir a arte através
desse alargamento.
Aqui foi abandonado o nome arte.
Apresentar estadias giratórias, por serem
singulares e universais, é o trabalho objetivo (trato aqui de objetos) da
cosmicidade. São objetos gonzos que acessam a memória cósmica por terem uma
fidelidade psicológica, pois não se alinham com as exatidões da memória social,
fazendo parte de um acordo íntimo e ancestral. Por serem dobradiços, atravessam
o acordo social e revisitam o pertencimento do mundo - não o mundo do manejo,
dos costumes e dos comandos sociabilizados, sim do mundo comandado pelo sol. É
no esvaziamento do mundo que nos impele contra esse mundo do sol que comanda,
que surgem estas ferramentas que servem para renovar o ser, dar vida e
reconcilia-lo com o que nos acolheu primeiro.
Fazer visitar esta primeira acolhida -
abertura ancestral onde o sol é o único dominador -, e fazer ressoar os
dinamismos de entrada no mundo é a agência de tais objetos de cosmicidade.
Nessa abertura o ser se vê apto a
expandir-se a cada revigoramento.
Fazer visitar este mundo da primeira vez
onde moram as lembranças da infância, dando-lhes vida numa memória
experimentada, afim de testemunhar o eterno de tudo: sol, céu, o cheirar e o
andar, fazendo estar presente em todas as ações de existência que nos são
anteriores e permanentes, é uma de suas maiores pretensões.
Fazendo uso das exatidões dos universos
imaginados, assinalando a vida de maneira ilustrada como a infância é, fazendo
vê-la e revê-la com suas cores e seus cheiros, a cosmicidade visa o acolhimento
e a visualização do entorno ressoante, através de uma terreno-sondagem dos
universos íntimos e êxtimos.
Trata-se também, de um jogo de
correspondências - fazer uso das ilusões como um adentramento na realidade.
Este trabalho é fazer a realidade – trampolins para o processo de ilusão -,
corresponder aos devaneios e assim, fazer possível manter-se no real.
Essa empreitada não trata de
representações oníricas e nem de substâncias que se revelam no brilho.
Opacidade, musgo e terra, são palavras que correspondem mais a este trabalho de
recolher a realidade para dentro dos devaneios, transmutando-a nessa cobertura,
para depois estendê-la novamente, renovada e flexível, aberta a alternâncias e
conjugações – forças aéreas e terríveis como a água parada de um lago que,
preso na terra, reflete o céu. As nuvens caminham dentro do lago, como o lago anda
com as nuvens. È por isso que nesse lago de água parda, não é a beleza o seu
elemento. Fora o seu reflexo, pouco brilho existe no verde - musgo de sua água velha,
enlameada, onde poucos ousariam mergulhar.
Nessa água, é a velhice que reina oposta a eterna juventude, uma velhice
que é renovadora por se tratar de uma água medicinal, medicinal por se tratar
de uma água velha , e velha por nela se dar a impressão de que ela sempre esteve
ali. Aqui, não são as belas aparências do mundo interpretável dos sonhos - que
seguem o encalço do mundo desperto, positivo e cognoscível - que reinam, a
elevação da verdade e a perfeição, são estados distintos dessa agência. Nela, não
se acessa um deus artístico e lacunarmente diurno, pois em sua essência, lhe
faltam limites – a aparência ilude, engana e, sem delimitações, não ensina nada
por somente esbarrar agitações selvagens, contradizendo a sabedoria calma do
artista. É impossível ser solar e calmo, ao mesmo tempo que colérico e arredio,
por isso, é a tentativa de permanecer nessa conjugação que gera uma embriaguez
arrebatadora e repousante ao mesmo tempo. É essa embriaguez incondicional que
nos faz tocar o homem natural e ingênuo, até o esquecimento de si, que é oposto
à consagração da beleza. Esse rompimento com o cordão umbilical “consigo”, é o
que faz desaparecer inteiramente o princípio de individuação, e com isso, a
subjetividade se desfaz diante de um impulso geral, natural e universal. É nessa
reconciliação com o sempre oculto da natureza, nos fazendo evidenciar uma
pareia e beber de seus dons mais terríveis (tratamos aqui de terra), que
conseguimos ir além de nossa ligação com os homens-imagens com seus desejos,
tarefas, prazeres e dramas. Nesse ir além, todas as delimitações, junto com o
arbítrio, desaparecem diante do hálito da fenda ancestral e anterior aos
acordos. É o manter-se farejando esse hálito, que faz espocar e manejar as
imagens que sugerem a laboração desta cosmicidade.
Conceber e adentrar o âmbito disso que
brota, exige o desprendimento das educações e, principalmente de dogmas que já
dizem, cercados por todos os lados com palavras, sobre o natural e a natureza -
como se desaprendêssemos a andar e falar. Só assim, encantado, ingênuo, borrado
e simples, é possível – a partir de si, e não de falas externas, fazendo viver
em si mesmo o que é sugerido somente em potência imaginativa - acolher essa
harmonia de mundos e sentir algo diverso que soa sobrenatural. É por isso que não
é possível falar em arte, nem de poder artístico – nem mesmo na voz de um
artista -, pois é a natureza sem nome que se apresenta opaca e o caminhar se
torna tão extasiado que tudo é obra de arte, deixando de se fazer necessária.
Nessa correspondência cósmica, os corpos são
trabalhados – verificados, recortados, ajuntados, diagramados, justapostos -,
tratando-se de colagens, pinturas e esculturas que rediagramam a vida num
constante reposicionamento, nos deixando para a natureza, como a tinta é para o
pintor.
Os devaneios são naturais e, se os
devaneios são o jogo da natureza com o homem, os trabalhos que se dão numa
cosmicidade, são frutos do jogo do homem com seus devaneios. Por isso é necessário,
o tempo todo, recuar e ausentar a voz do homem que fala, pois este estado, se
não experimentado em si próprio – e consecutivamente por si próprio -, não
passará de uma alegoria. Só se pode ser semelhante e comungar dessa conjugação,
quando se devaneia o devaneio como devaneio. Pois é assim que cada um se sabe, prescindindo
ao seu modo, podendo o barco partir de qualquer porto. É assim que se pode ser
servidor do devaneio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário