sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Sobre o abandono da arte de acolhida e o escave de uma cosmicidade






                                        Cosmicidade

Foi quando consegui buscar os limbos das sombras memoriais de minha infância, transformando-as em luz, em água tranquila e lenta, que acessei, nessa reforma, as espessuras de um nascimento.

A arte aqui tomou um sentido expandido - sendo arte só por falta ainda de outro termo que diga dessa agência -, funcionando para fazer e refazer estas camadas - refazendo o sentimento de acolhida e a sensação de estar em casa. Ela funciona como a própria natureza da terra, evidenciando - e por isso fornecendo - inúmeras oblações e reservas nutritivas - como uma espécie de cotilédone placentário. Só assim foi possível saltar do negativo para o positivo de estar no mundo não como um ser abandonado sem amparo, e sim como um ser acolhido no anteparo terrestre. Esse processo é semelhante ao das folhas embrionárias que, com reservas nutritivas, fornecem alimentos aos embriões contidos nas sementes. Simplesmente ver e falar para que essas camadas de nutrição sejam vistas, é o trabalho desta arte de acolhida e acolhedora. O radicante de sua voz é exaltar, fazer e refazer a goma ligante e as energias de cada fibra das peles - aqui identifico sete - entre as divisões sub-uterinas do mundo, do planeta e por que não, do cosmos: tudo isso, aqui, chama-se casa.

Na impossibilidade de abandonar o espaço, estando mergulhado na tarefa terrível de ser num sistema universo, nasce a possibilidade de recolher-se no seio da vida que é a Vida De. Esse momento é visto como o momento negativo do morar que determina um recolhimento de inversão - uma presença junto a tudo do entorno, sugerindo amigamentos, elegias, elencamentos, evocações, exclusões, repulsas, atrações e aceitações, tudo isso sob o signo da gratidão -, e jamais um sentimento de uma posse-eco, mas sim de pertencimento por conter um recuo diante de tudo. Isso implica - implica por sugerir um arrebatamento incondicional, sem desvio - um acontecimento novo - estado de relação com o que ainda não vivemos e não nos é. Essa relação com o novo, com esse Outrem é o que nos acolhe na casa, na presença discreta do feminino. Para que a arte de acolhida – nome-forma provisório da expressão de uma cosmicidade - possa ser vista e realizada discretamente como a essa presença feminina é, é preciso rejeitar a posse, a autoria, como forma de doação - anulação da mão que assina -, pois só assim é possível ver e apresentar - até quando seja necessário - as coisas em si. Para atingir esse não eu, é preciso se situar acima do comprometimento pessoal, se pondo em questão constantemente ao abordar esse Outrem indiscreto que se apresenta. Abordá-lo é recepcioná-lo de cima e jamais de fora, não com o olho que mapeia e se perde na tentativa de esquadrinhá-lo, sim com a medida mesma que ele sugere.


O nome arte é redundante para dizer de uma cosmicidade, pois toda arte pretende este trabalho e, sendo cosmicidade um nome demasiadamente vago, ele dá a oportunidade de abranger inúmeras possibilidades e assuntos, podendo ampliar e assim implodir a arte através desse alargamento.
Aqui foi abandonado o nome arte.
Apresentar estadias giratórias, por serem singulares e universais, é o trabalho objetivo (trato aqui de objetos) da cosmicidade. São objetos gonzos que acessam a memória cósmica por terem uma fidelidade psicológica, pois não se alinham com as exatidões da memória social, fazendo parte de um acordo íntimo e ancestral. Por serem dobradiços, atravessam o acordo social e revisitam o pertencimento do mundo - não o mundo do manejo, dos costumes e dos comandos sociabilizados, sim do mundo comandado pelo sol. É no esvaziamento do mundo que nos impele contra esse mundo do sol que comanda, que surgem estas ferramentas que servem para renovar o ser, dar vida e reconcilia-lo com o que nos acolheu primeiro.
Fazer visitar esta primeira acolhida - abertura ancestral onde o sol é o único dominador -, e fazer ressoar os dinamismos de entrada no mundo é a agência de tais objetos de cosmicidade.
Nessa abertura o ser se vê apto a expandir-se a cada revigoramento.
Fazer visitar este mundo da primeira vez onde moram as lembranças da infância, dando-lhes vida numa memória experimentada, afim de testemunhar o eterno de tudo: sol, céu, o cheirar e o andar, fazendo estar presente em todas as ações de existência que nos são anteriores e permanentes, é uma de suas maiores pretensões.
Fazendo uso das exatidões dos universos imaginados, assinalando a vida de maneira ilustrada como a infância é, fazendo vê-la e revê-la com suas cores e seus cheiros, a cosmicidade visa o acolhimento e a visualização do entorno ressoante, através de uma terreno-sondagem dos universos íntimos e êxtimos.
Trata-se também, de um jogo de correspondências - fazer uso das ilusões como um adentramento na realidade. Este trabalho é fazer a realidade – trampolins para o processo de ilusão -, corresponder aos devaneios e assim, fazer possível manter-se no real.

Essa empreitada não trata de representações oníricas e nem de substâncias que se revelam no brilho. Opacidade, musgo e terra, são palavras que correspondem mais a este trabalho de recolher a realidade para dentro dos devaneios, transmutando-a nessa cobertura, para depois estendê-la novamente, renovada e flexível, aberta a alternâncias e conjugações – forças aéreas e terríveis como a água parada de um lago que, preso na terra, reflete o céu. As nuvens caminham dentro do lago, como o lago anda com as nuvens. È por isso que nesse lago de água parda, não é a beleza o seu elemento. Fora o seu reflexo, pouco brilho existe no verde - musgo de sua água velha, enlameada, onde poucos ousariam mergulhar.  Nessa água, é a velhice que reina oposta a eterna juventude, uma velhice que é renovadora por se tratar de uma água medicinal, medicinal por se tratar de uma água velha , e velha por nela se dar a impressão de que ela sempre esteve ali. Aqui, não são as belas aparências do mundo interpretável dos sonhos - que seguem o encalço do mundo desperto, positivo e cognoscível - que reinam, a elevação da verdade e a perfeição, são estados distintos dessa agência. Nela, não se acessa um deus artístico e lacunarmente diurno, pois em sua essência, lhe faltam limites – a aparência ilude, engana e, sem delimitações, não ensina nada por somente esbarrar agitações selvagens, contradizendo a sabedoria calma do artista. É impossível ser solar e calmo, ao mesmo tempo que colérico e arredio, por isso, é a tentativa de permanecer nessa conjugação que gera uma embriaguez arrebatadora e repousante ao mesmo tempo. É essa embriaguez incondicional que nos faz tocar o homem natural e ingênuo, até o esquecimento de si, que é oposto à consagração da beleza. Esse rompimento com o cordão umbilical “consigo”, é o que faz desaparecer inteiramente o princípio de individuação, e com isso, a subjetividade se desfaz diante de um impulso geral, natural e universal. É nessa reconciliação com o sempre oculto da natureza, nos fazendo evidenciar uma pareia e beber de seus dons mais terríveis (tratamos aqui de terra), que conseguimos ir além de nossa ligação com os homens-imagens com seus desejos, tarefas, prazeres e dramas. Nesse ir além, todas as delimitações, junto com o arbítrio, desaparecem diante do hálito da fenda ancestral e anterior aos acordos. É o manter-se farejando esse hálito, que faz espocar e manejar as imagens que sugerem a laboração desta cosmicidade.

Conceber e adentrar o âmbito disso que brota, exige o desprendimento das educações e, principalmente de dogmas que já dizem, cercados por todos os lados com palavras, sobre o natural e a natureza - como se desaprendêssemos a andar e falar. Só assim, encantado, ingênuo, borrado e simples, é possível – a partir de si, e não de falas externas, fazendo viver em si mesmo o que é sugerido somente em potência imaginativa - acolher essa harmonia de mundos e sentir algo diverso que soa sobrenatural. É por isso que não é possível falar em arte, nem de poder artístico – nem mesmo na voz de um artista -, pois é a natureza sem nome que se apresenta opaca e o caminhar se torna tão extasiado que tudo é obra de arte, deixando de se fazer necessária.
Nessa correspondência cósmica, os corpos são trabalhados – verificados, recortados, ajuntados, diagramados, justapostos -, tratando-se de colagens, pinturas e esculturas que rediagramam a vida num constante reposicionamento, nos deixando para a natureza, como a tinta é para o pintor.

Os devaneios são naturais e, se os devaneios são o jogo da natureza com o homem, os trabalhos que se dão numa cosmicidade, são frutos do jogo do homem com seus devaneios. Por isso é necessário, o tempo todo, recuar e ausentar a voz do homem que fala, pois este estado, se não experimentado em si próprio – e consecutivamente por si próprio -, não passará de uma alegoria. Só se pode ser semelhante e comungar dessa conjugação, quando se devaneia o devaneio como devaneio. Pois é assim que cada um se sabe, prescindindo ao seu modo, podendo o barco partir de qualquer porto. É assim que se pode ser servidor do devaneio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário