Um relato de lucidez
Aqui é o lugar onde o tempo parou. Na
verdade ele, o tempo, não parou, nós é que paramos para com ele. Foi a
iniciativa mais sóbria da cidade. Por isso lhe servimos esta cachaça e lhe
falamos sobre a neve em pleno calor dos trópicos: o sertão mais ereto dos arredores
é corcunda de nascença. Tudo em volta
envelhece lentamente por conta do ar bege avermelhado encaixando-se como um
acontecimento que deixou de ser só mera realidade. São estas tonalizações que
elevam as coisas ao nível de ser . Talvez seja através
desta saturação que abrimos o nosso dia-a-dia ao grau de um instante só: ele se
amplia e o seu âmbito se faz incessante, simultâneo e partilhável. A isso
chamamos de intensidade essencial para acordar e conseguir sair da cama. O
devaneio é uma clareira de ser. Ele é a possibilidade nas frestas dos acordos aos
quais já nos cansamos o bastante. Por isso descansamos até de ser e nos
deslocamos das ansiedades desta sociedade que, com seus acordos, fritam nossos
neurônios. Este é o apagamento da frase “quem não trabalha
não come” que foi tatuada no interior de nossas pálpebras. Apesar de nossos dentes estarem amarelados,
conseguimos preservar as nossas glândulas de cristal dentro. E este é o talo: somente
as luzes de nossos fosfenos ditarão onde seguiremos ou as regras de como permaneceremos.
Dentro de uma sala todos pareciam estar dormindo, menos o lango de mordida
torta. Este núcleo está por toda parte e pode ser acessado de qualquer lugar
sendo que, na verdade, é este núcleo que nos acessa e não o contrário. Trata-se
de um estado em que as crianças brincam soltas na rua e os mais astutos pisam
nele cotidianamente.
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